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Reportagens

Mulheres desenvolvem jornadas para ressignificar a menstruação

Reportagem de Dhandhara Costa e Karoline BernardiDhandhara Costa e Karoline Bernardi

Um sangramento não estancado é capaz de levar um ser humano a óbito em pouco tempo. Assim, por séculos, a menstruação foi uma intriga: como pode um ser sangrar todo mês, durante cinco dias, e não morrer? Hoje se sabe que apenas pessoas com útero e mais outras três espécies de mamíferos, vivenciam esta experiência. E talvez, por ser uma característica restrita, a menstruação cause ainda tanto estranhamento e tabu.

A experiência começa em um dia entre a pré-adolescência e adolescência, quando a menina se depara com um borrão vermelho escuro na calcinha. Talvez, esperava ansiosa por esse momento ou nem fazia ideia do que estava acontecendo. Provavelmente até tenha ouvido da mãe: “Parabéns você virou mocinha!”. A frase pode ter sido acompanhada por um longo código de etiqueta e alguns eufemismos como: ficar de regra, naqueles dias, lua vermelha… todos para evitar a famigerada palavra.

Apesar do sangue menstrual ser o mesmo sangue que corre nas veias, muitas vezes é visto com certo nojo. Com a institucionalização da medicina, após o século XIX, a visão que a sociedade possuía sobre a menstruação se transformou. O conhecimento do corpo feminino que estava nas mãos das bruxas, parteiras e herboristas da época, passou a ser tratado como algo marginalizado e o saber da vivência se tornou científico. A antropóloga Janaína de Araújo Morais explica que “era um interesse do Estado e da Igreja ter o monopólio sobre o conhecimento dos corpos.[…] esse corpo fica cada vez mais sendo objeto de estudos profundos[…]”. Nesse processo de domínio do corpo feminino pela ciência, a menstruação passou a ser controlada e vigiada, um processo que, de acordo com Janaína, precisa ser “higienizado, cria-se toda uma etiqueta de como lidar com a menstruação”.

“Era um interesse do Estado e da Igreja ter o monopólio sobre o conhecimento dos corpos.[…] esse corpo fica cada vez mais sendo objeto de estudos profundos[…]”

Corpos menstruantes são ensinados a não gostar de algo biológico, influenciados por uma construção social e cultural. Alguns repudiam tanto este período que optam pela ingestão de contraceptivos hormonais de maneira contínua, para alterar o ciclo e cessar a menstruação. Entretanto, não é possível interromper por muito tempo esta necessidade do corpo. A Dra. Juliana Probst, ginecologista, destaca “geralmente no terceiro mês de cartela continuada, ocorrem alguns sangramentos de escape, é como se o útero pedisse para sangrar em algum momento”. Tendo que conviver com isso, por mais ou menos 35 anos, a vida fértil de uma pessoa com útero vira um leque de possibilidades.

Com o advento da pílula na década de 50, as mulheres conquistaram a liberdade da escolha, podendo decidir quando engravidar e quando menstruar. A pílula as colocou em posição de poder sobre si mesmas. Entretanto, hoje sabemos que, como todo o medicamento, a pílula também pode causar efeitos colaterais indesejados como enxaqueca, varizes, trombose, diminuição da libido e até mesmo um AVC. Por isso, algumas mulheres prezam pelo fim da medicalização do corpo feminino. Para elas, menstruar como suas ancestrais é sinônimo de liberdade. Esse processo de voltar a viver a menstruação de forma natural, vem ganhando mais adeptas graças à difusão de informações sobre outros métodos contraceptivos não hormonais. Eles permitem o controle da natalidade sem interferir na menstruação e na saúde da pessoa.

Marion da Rosa, 29 anos, cresceu ouvindo sua tia falar o quanto amava menstruar, então esperava ansiosa pelo seu momento. Teve sua menarca com 13 anos, um pouco mais tarde que as amigas do colégio, e pela novidade foi muito bem acolhida por sua mãe e avó. Ficou muito feliz, mesmo escutando da matriarca da família a irônica frase “agora você vai ver o que é ser mulher, o que é bom!”. Assim como a tia, Marion se relacionou bem com o sangue menstrual desde o início, mas, reconhece que nem todas as pessoas têm essa sorte “muitas mulheres apagam da mente a menarca ou por ser um momento traumático ou por ser algo tipo use esses absorventes aqui, não fale sobre isso e esconda”.

Apesar de que sua primeira vivência foi positiva, a conexão de Marion com sua menstruação começou em 2015, quando uma amiga lhe apresentou o coletor menstrual. “Primeiro chegou a consciência ecológica, o que foi essencial para ter tido esse contato”, relembra. Vendo seu sangue puro no copinho, percebeu que ele não era nem sujo nem nojento. Marion parou de despejá-lo na privada para colocá-lo na terra. A mudança aconteceu após conhecer o ritual de Plantar a Lua em um curso de Gineterapia (do grego gyne= mulher e therapia= cuidar), uma terapia holística com foco no cuidado da mulher, baseado em conhecimentos da natureza e femininos.

Marion relembra que se sentiu tocada com a profecia das indígenas Lakotas que dizia que “quando a mulher voltar a devolver seu sangue para a terra o Homem não vai mais precisar fazer esse derramamento de sangue através da guerra”. Ali surgiram as Tendas Vermelhas, um local em que as mulheres da tribo se reuniam, durante a lua nova, para sangrarem juntas diretamente na terra. Em troca recebiam as visões sobre o futuro. Para elas, a natureza precisava dos nutrientes contidos no sangue menstrual. Acredita-se que o período da menstruação é o momento mais poderoso para a intuição feminina, razão pela qual essa tradição ainda é realizada em diferentes culturas.

Para Marion é importante todo mês ter esse momento mais íntimo consigo mesma. Para Plantar a Lua não há regras, basta misturar seu sangue à água, espalhá-lo na terra e seguir sua intuição. Enquanto derrama seu líquido precioso nas plantas de seu apartamento, ela reflete “o que eu passei nesse ciclo que eu quero deixar ir? A menstruação é a correlação de um período de morte e renascimento. Então, coisas que você sente que não te servem mais esse é o momento de deixar ir, algo negativo que ficou muito forte durante aquele ciclo. E aí você Planta a Lua com essa intenção”.

Marion compartilha nas redes sociais seus rituais com o sangue menstrual.                
Foto/Reprodução: Marion da Rosa @saberesdalua

Ao passo que a terra absorve a insegurança, medos e anseios a pessoa pode também invocar preces e reivindicar seus sonhos e desejos. Marion exemplifica“agora que eu deixei isso ir eu reivindico a coragem de ser quem eu sou, de expressar minha essência, de fazer aquilo que eu desejo”. É o momento de esclarecer para o universo o que você deixa morrer e o que quer que floresça dentro de si. Quem Planta a Lua acredita no poder desse sangue, pois ele foi preparado pelo corpo com a intenção de nutrir um outro ser. Desta forma, em sinal de agradecimento a sua potência, é devolvido a natureza. 

Além de Plantar a Lua, Marion pratica outros rituais menstruais. Nos ciclos em que sente muita cólica, manifesta sua dor em forma de arte, utilizando o sangue como tinta. “É a pura expressão de sentimentos que eu sinto que não pude colocar para fora durante o ciclo e aí aquilo voltou para mim em forma de dor”. Ela lembra de uma fase da vida que apareceram espinhas incomuns em seu rosto então, decidiu fazer uma máscara facial com o sangue menstrual “eu pude aprofundar ainda mais minha conexão com ele e para mim foi um divisor de águas, foi muito mais do que Plantar a Lua, foi sentir de mais perto o meu sangue”. Mesmo não existindo evidências científicas que comprovem a eficácia, ela se surpreendeu com o resultado positivo que teve em sua pele.

Embora muitas pessoas ainda vejam esses rituais como uma romantização da menstruação, a gineterapeuta ressalta “somos todas diferentes e temos nossas questões”. Marion, por exemplo, até hoje tem alguns problemas fisiológicos relacionados à menstruação, como ciclos irregulares. Porém, as práticas ritualísticas cumprem o papel de ajudar a olhar para as frustrações de outra maneira “elas não servem necessariamente para entender os porquês, mas promover aceitação para aquilo que vem do jeito que vem. Para mim é um processo de busca, de dores e ao mesmo tempo de ressignificações e de alegrias é muita mistura”.

”Para mim é um processo de busca, de dores e ao mesmo tempo de ressignificações e de alegrias é muita mistura”.

Para quem não tem uma boa relação com seu sangue menstrual, mas deseja lidar melhor com esse período, Marion indica começar trocando os absorventes descartáveis por opções ecológicas. “Só de trocar o absorvente normal por um de pano ou coletor, isso já é um super passo, porque ali você vai lavar, ter uma conexão, sentir o cheiro do sangue que fica diferente do que com absorvente descartável. Ali já começa uma transformação”.  O principal, para ela, é ir aos poucos, não fazer nada forçado. Compreender que é um caminho de aceitação e acolhimento e que não há espaço para o julgamento, principalmente a respeito de outras mulheres que não conseguem se conectar com seu sangue da mesma forma.

Ciclar todos os meses livre de hormônios é a escolha de Marion. Contudo, para outras mulheres a melhor opção é utilizar contraceptivos hormonais com a função de diminuir o contato com o sangue. Quando não há riscos para a saúde, não existe escolha certa ou errada, apenas opções que se adequam a cada pessoa. A antropóloga Janaína Morais ressalta “há mulheres que veem menstruar como um fardo e a supressão como algo benéfico. O importante é colocar a mulher em total posse do seu corpo, do que ela escolhe para si e seu ciclo, fugindo da ideia da essencialização do corpo feminino”.

Ao passar pelo processo da ressignificação, as mulheres entendem que a percepção de que o sangue é anti-higiênico, não lhes pertence.  Para Janaína é essencial que menstruação passe a ser mencionada como um processo natural, que possa ser citada em qualquer âmbito, “é primeiro trazer um tema que estava obscuro […] que estava sendo reservado ao campo privado do banheiro e agora a gente vai falar sobre ele e vamos deixar cada pessoa falar o que quiser falar da menstruação”. Esse tabu precisa ser quebrado, já que em algum momento todas as pessoas terão contato com o sangue menstrual, seja mulher, homem, cis ou trans.

“Há mulheres que veem menstruar como um fardo e a supressão como algo benéfico. O importante é colocar a mulher em total posse do seu corpo, do que ela escolhe para si e seu ciclo, fugindo da ideia da essencialização do corpo feminino”

A menstruação é uma manifestação natural dos corpos com útero, é uma ferramenta de autoconhecimento e uma maneira do organismo indicar se está saudável. A Dra. Juliana afirma “para entender o que é normal dentro de cada ciclo as mulheres precisam se conhecer, saber o que é agradável pro seu próprio corpo, já que cada uma possui características e normas de funcionamento diferentes”. Na maioria dos casos, o intervalo entre um ciclo e o outro dura entre 21 à 40 dias, com média de cinco dias de sangramento. O total de sangue eliminado, durante o período, não deve ultrapassar as 80mL, isso equivale a quase meia xícara de chá. Em uma menstruação saudável também é comum apresentar cólicas e alterações de humor, devido à queda de estrogênio. Sempre que os sintomas forem exagerados ou incapacitantes deve-se procurar imediatamente um médico da área.

Esta liberdade para cada mulher manifestar a sua vontade, existe graças a um grande grupo que enfrentou o patriarcado e trouxe autonomia às mulheres. Juliana, Janaína e Marion, são pessoas que divergem em alguns posicionamentos, mas reconhecem que cada escolha é individual e não deve ser julgada. A educação menstrual recebida na menarca pode influenciar na forma de lidar com a menstruação. Mas, não é um fator determinante, sempre há espaço para mudar. Decidir, rever, voltar atrás se assim for melhor. Cada mulher é dona de seu corpo, portanto, são suas decisões.

Reportagem produzida para a disciplina Apuração, Redação e Edição III, do Curso de Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina, sob orientação da Profa. Dra. Melina de la Barrera Ayres.

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