19 de dezembro de 2022
Reportagem de Rodrigo Barbosa
Em reunião com o movimento indígena na última segunda (12), a Reitoria da UFSC informou que devolverá à União cerca de R$ 700 mil destinados à reforma de um espaço que serviria como alojamento para os estudantes indígenas da instituição. O valor foi arrecadado pela Universidade, em 2019, através de emendas parlamentares, mas a incapacidade de iniciar as obras fez com que a instituição tivesse que devolver o dinheiro, uma vez que o contrato com a empresa responsável por realizar o serviço foi rompido três anos após a licitação, sem sinal de obras.
O local em questão serviria como alojamento provisório para os estudantes indígenas que atualmente vivem na Maloca, ocupação de estrutura precária que existe há seis anos, até que uma moradia definitiva seja providenciada pela universidade. A licitação foi feita sob a gestão do ex-reitor Ubaldo Cezar Balthazar e seu contrato foi prorrogado duas vezes pela mesma administração. A justificativa era a de que o espaço a ser reformado não estava liberado, abrigando um laboratório do curso de Biologia.
Em 28 de junho deste ano, durante agenda do movimento indígena em Brasília, a então Reitoria afirmou aos estudantes e ao deputado federal Pedro Uczai que a obra se iniciaria na semana seguinte. Uczai foi um dos deputados que destinou verbas para a reforma. Aquela, entretanto, era a última semana da antiga gestão da UFSC no comando. No começo de julho, um novo grupo assumiu a universidade e a promessa da gestão anterior não foi cumprida.
Irineu Manoel de Souza, reitor da UFSC desde julho de 2022, falou sobre o tema pouco depois de assumir o comando da universidade. Em entrevista ao Cotidiano no dia 22 daquele mês, Irineu afirmou que a Reitoria já havia localizado a verba do alojamento indígena. Segundo ele, o dinheiro havia sido empenhado pela gestão anterior, mas não foi repassado à empresa devido ao atraso para o começo das obras. Àquela altura, o prefeito do campus, Hélio Rodak, negociava com a empresa vencedora da licitação de 2019 para encaminhar a reforma.
Em 21 de setembro, em reunião no gabinete, a Reitoria informou aos estudantes indígenas que as primeiras negociações com a Maxi Empreendimentos, empresa então responsável pela reforma, haviam falhado. A universidade ofereceu um reajuste de 35% para readequar o valor ao aumento de preços de material e mão-de-obra durante os dois anos e meio de atraso na reforma, mas a Maxi recusou a proposta, se fazendo valer de uma cláusula contratual que permitia à empresa não realizar o serviço em caso de atraso na liberação do espaço por parte da UFSC. Segundo a Reitoria, o valor oferecido trata-se do limite legal de reajuste. As negociações com a empresa que ficou em segundo lugar no processo de licitação também não renderam resultados.
Com o fim das alternativas para a execução da obra, o contrato foi rescindido amigavelmente em 28 de novembro de 2022. Desta forma, a verba retorna aos cofres da União. Isto porque o Decreto nº 93.872, que rege a legislação acerca de gastos públicos, determina que o “empenho de uma verba pública não liquidada será considerado anulado em 31 de dezembro” daquele ano fiscal. Ou seja, como o contrato sequer existe mais, o dinheiro retorna à origem, não podendo mais ser utilizado pela UFSC. No caso dos dois anos anteriores, como houve prorrogação justificada do contrato por parte da universidade, a verba ainda não havia sido classificada como não liquidada.
A Reitoria promete a entrega do alojamento para novembro de 2023, prazo que foi mantido mesmo com a extinção do contrato, quase três meses mais tarde. De acordo com as projeções do Departamento de Orçamentos da UFSC, o novo valor da obra será de pelo menos R$ 1,3 milhão, dos quais R$ 200 mil já estariam garantidos. Durante reunião no dia 12 de dezembro, a universidade se comprometeu a alocar recursos dela própria para que uma nova licitação seja feita em janeiro de 2023.
O tempo de execução da reforma é estimado em 180 dias corridos. Para que o prazo seja cumprido, as obras precisam começar até abril de 2023. A verba perdida recentemente não pode ser utilizada nesta nova licitação, pois se trata de um novo processo de alocação de recursos. Segundo a Reitoria, já está em andamento a nova licitação para realização da reforma do futuro alojamento.
A promessa de Irineu vem num momento em que as finanças da UFSC passam por sérios problemas, com constantes cortes e bloqueios por parte do Governo Federal ao longo dos últimos quatro anos. No fim de novembro, por exemplo, foram bloqueados R$ 7,9 milhões das contas da UFSC, ameaçando o pagamento de bolsas, refeições do Restaurante Universitário e áreas como segurança e limpeza da instituição. Além disso, um corte definitivo de mais de R$ 12 milhões do orçamento de custeio da UFSC foi aplicado em junho deste ano.
O cancelamento do contrato da reforma incomodou o movimento indígena da UFSC. Na reunião do anúncio, lideranças da Maloca definiram a devolução do dinheiro por parte da universidade como “desrespeitosa”.
A notícia chega num momento especialmente delicado para os estudantes. Em dois meses, com o começo de um novo semestre, ao menos 30 novos estudantes são esperados na Maloca, que já se encontra superlotada. Uma semana antes da reunião com a reitoria, a ocupação sofreu um alagamento com as fortes chuvas que caíram em Santa Catarina. Sala de estudos, cozinha, quartos e o pátio central da Maloca tiveram danos devido aos problemas de infiltração e drenagem do local.
Representantes da reitoria, incluindo o próprio reitor, estiveram pessoalmente na Maloca na manhã seguinte do alagamento para avaliar os problemas. Na tarde daquela quinta-feira foram colocadas lonas na caixa d’água do local e no telhado que cobre a cozinha e um dos quartos da ocupação. Parte das lonas voariam com o vento menos de uma semana mais tarde, quase atingindo crianças que estavam no local.
Além disso, foi oferecida aos estudantes indígenas a possibilidade de permanecerem acampados no hall da reitoria durante o período das chuvas. A proposta foi prontamente recusada pelo movimento. Dentre os vários motivos para a recusa, estão o fato de que naquela mesma semana o local vinha abrigando uma exposição fotográfica realizada pelos próprios indígenas e o de que hall da reitoria também havia ficado alagado na noite anterior.
A ideia de mover os estudantes indígenas para a moradia convencional da universidade também foi levantada pela PRAE em ao menos duas ocasiões: a primeira, logo após o alagamento; a segunda, na última reunião entre as partes, como uma possível solução para abrigar os calouros indígenas. A Casa do Estudante Universitário tem capacidade para cerca de 160 pessoas e, segundo relatado pelo próprio reitor à reportagem do Cotidiano, sequer dá conta de atender à demanda de estudantes não-indígenas. Questionada pelo movimento indígena sobre como se daria a readequação do local para possivelmente receber os moradores da Maloca, a reitoria não apresentou um plano. A ideia é inicialmente rechaçada pelos estudantes indígenas, que reivindicam um espaço próprio e adequado.
Na percepção dos estudantes indígenas, as chuvas do começo de dezembro apenas evidenciaram uma série de problemas que os estudantes relatam há anos na Maloca. O próprio reitor admitiu, em entrevista ao Cotidiano, que a situação enfrentada pelos moradores da ocupação é “absurda”. Àquela altura, em julho, o reitor disse que a universidade faria “as reformas necessárias para tentar viabilizar as condições mínimas de saúde para as pessoas poderem utilizar a Maloca”. Segundo Irineu, uma série de solicitações feitas pelos estudantes “há bastante tempo” já eram de conhecimento da então recém-empossada gestão.
Desde então, foram realizadas uma série de encontros entre estudantes indígenas e diversos setores da universidade, como a prefeitura do campus e a PRAE, para discutir melhorias na ocupação. Novos chuveiros foram instalados em 20 de setembro, mas devido à falta de ajustes na corrente elétrica do prédio, parte deles queimou dias depois. Lâmpadas e tomadas foram trocadas e um ralo desentupido.
A reitoria ainda conseguiu a liberação de um espaço anexo à Maloca, até então usado por servidores da instituição, para que sirva como sala de estudos dos estudantes indígenas. A demanda por um espaço específico para este fim existia há pelo menos seis anos. O novo local, entretanto, sofre com infiltrações e problemas na rede elétrica e, por conta disso, não pode ainda receber computadores (apenas duas máquinas antigas atendem os indígenas atualmente na própria Maloca).
Uma série de adequações, segundo a gestão, vêm enfrentando problemas licitatórios ou financeiros para que sejam efetuadas. É o caso das trocas de esquadrias e pisos, por exemplo. Foi feita uma pequena reforma no piso da lavanderia, mas coube aos próprios estudantes a instalação das máquinas e a busca por uma solução para o escoamento da água no local – processo este que não foi completamente concluído. No mais, a Maloca segue sendo a mesma antiga Maloca de sempre.
O Ministério Público Federal, representado pela procuradora Analúcia Hartmann, vem acompanhando o processo. A procuradora esteve na reunião do último dia 12 de dezembro e cobrou mais agilidade da UFSC para resolver problemas relacionados à moradia indígena. Segundo ela, uma série de prazos estabelecidos pela gestão no encontro anterior entre as partes, em setembro, não foram cumpridos. Irineu concordou que “algumas questões deveriam ter andado mais rapidamente”.
A solução proposta pelo Ministério Público Federal foi a assinatura de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) entre a universidade e o MPF. Neste acordo, segundo a procuradora, estarão estabelecidos prazos para reformas na Maloca e para a execução da obra do alojamento provisório, após a realização de uma nova licitação. Além disso, ela pontuou a importância de que o projeto de moradia definitiva também esteja incluído no termo para que, dentre outras coisas, a arrecadação de recursos para a futura moradia seja menos burocrática.
A redução de burocracia, inclusive, é destacada positivamente pelo movimento indígena com relação à atual gestão da UFSC. O acesso ao PAIQ (Programa de Assistência Estudantil para Estudantes Indígenas e Quilombolas) teve seu edital retificado para atender a demandas antigas dos estudantes.
Agora, segundo eles, mais alunos têm acesso ao benefício de R$ 900 oferecido pelo programa. A reitoria também estabeleceu para os indígenas acesso universal ao Restaurante Universitário, desde que o estudante em questão esteja inscrito no PAIQ. Há também uma nova secretaria, vinculada à PRAE, destinada especificamente para resolver questões relacionadas à moradia na universidade.
Além disso, está sendo elaborada uma minuta com políticas específicas para estudantes indígenas e quilombolas. Haveria um evento para debater o assunto na primeira semana de dezembro, mas este foi adiado devido às fortes chuvas. Dentro das próximas semanas, uma portaria deve ser publicada instaurando uma comissão para discutir estas políticas, que posteriormente serão levadas ao Conselho Universitário (CUn). Recentemente, processo similar aconteceu para estabelecer os parâmetros no combate ao racismo na UFSC.
Em relação à futura moradia definitiva para os estudantes indígenas, cujo processo não depende da reforma prometida para o começo do próximo ano, ainda resta uma série de etapas técnicas, financeiras e burocráticas a serem superadas. A previsão é de que o projeto executivo esteja pronto em 2024. O financiamento da obra já é objeto de articulações do movimento indígena e da própria reitoria.
Recentemente, representantes dos Estados Unidos estiveram na universidade para discutir o assunto, que também foi levado a Brasília pelos indígenas. Em contato com a reportagem, a administração da UFSC afirmou ter “compromisso com a inclusão social, a democratização da educação e o respeito aos povos originários”.