Reportagem de Beatriz Figueiredo e Jucelino Filho
Em janeiro de 2023, a Câmara dos Deputados terá cinco cadeiras ocupadas por indígenas, sendo quatro deles integrantes da chamada “bancada do cocar”. Sônia Guajajara (PSOL-SP), Juliana Cardoso (PT- SP), Paulo Guedes (PT-MG) e Célia Xakriabá (PSOL-MG) foram eleitos em outubro de 2022 a partir da organização política da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) que criou a “Campanha para aldear a política”, com o objetivo de formar a “bancada do cocar” e fazer frente à bancada ruralista.
Um número expressivo de candidaturas indígenas foram lançadas em 2022. Ao todo, foram 186, um aumento de 0,18% com relação ao pleito de 2018, quando foram registradas 133 concorrentes. O grande diferencial da campanha deste ano, foi a atuação conjunta dos candidatos indígenas com a APIB. A instituição disponibilizou suas mídias e meios de comunicação para que os candidatos pudessem apresentar suas propostas, dando a eles a visibilidade que precisavam. Além disso, a APIB proporcionou um encontro entre os indígenas para apresentarem a campanha e seus candidatos.
A líder indígena Kerexu Yxapyry (PSOL), que concorreu ao cargo de deputada federal por Santa Catarina e recebeu mais de 35 mil votos no Estado, cita também o apoio que os próprios candidatos deram uns aos outros. “Procuramos ir daqui para outro estado para fortalecer a candidatura dos parentes que estão ajudando na luta, geralmente quando é feito apenas dentro do meu povo, não tem a mesma visibilidade, ao unirmos nossas forças com outros povos e conseguimos ter mais articulação.”
Apesar de 2022 ser um marco pela quantidade de candidatos indígenas a disputarem as eleições, a luta política dos povos originários no Brasil é secular. O primeiro deputado indígena eleito foi Mário Juruna, que assumiu em 1982, durante a Ditadura Militar. A luta de Juruna buscava espaço político e legitimidade.
Pique Weitcha, estudante indígena de Antropologia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e ativista político das causas indígenas, explica que, na época, a sociedade via os povos indígenas com muito preconceito. “Juruna teve que lutar contra os estereótipos construídos sobre os indígenas e lutar contra a tutelagem instituída pela Funai [(Fundação Nacional do Índio)]”.
O voto de Juruna não possuía o mesmo peso dos votos de outros deputados devido à situação de tutela imposta aos povos originários. “Seu voto tinha que ser avaliado por outra pessoa, é como se, na visão do governo, ele não tivesse capacidade intelectual de discutir as situações em nível nacional”, afirma Pique. O maior desafio para que a trilha do congresso fosse finalmente aberta para os indígenas seria igualar o peso de sua voz ao peso da voz de um dos patriarcas de famílias influentes e dos militares que compunham o congresso. Juruna, inicialmente foi visto como uma figura inexpressiva na política, mas logo se tornou conhecido por sempre andar com um gravador. Ele denunciou o esquema de corrupção do pleito de Paulo Maluf à presidência, no ano 1984, e acusou a Funai de não atuar pelas causas indígenas, além de criar a Comissão Permanente do Índio, razões pelas quais enfrentou resistência e oposição na Câmara.
“A bancada do agronegócio trabalha contra as questões indígenas, a demarcação de terras e questões do meio ambiente. Aldear a política e criar a bancada do cocar, nos dará o poder de confrontar quem vota contra nossos direitos“, diz Pique.
Juruna foi eleito para apenas um mandato e após 36 anos dessa primeira ocupação indígena de uma cadeira política, em 2018, Joênia Wapichana foi eleita, sendo ela a segunda indígena a ocupar uma cadeira na Câmara dos Deputados e a primeira mulher indígena no cargo.
Em 2022, o Brasil completou 200 anos de independência. Os anos se passaram e diferentes regimes políticos foram instaurados, mas em todos os casos, os indígenas tinham pouca ou nenhuma representatividade política, o quê fez acender um sinal de alerta dentro das Terras Indígenas (T.I). Kerexu afirma que com o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff (PT), em 2016, o movimento indígena passou a refletir mais sobre a necessidade de se posicionar dentro da política partidária. Segundo ela, apesar dos avanços das políticas públicas durante os governos petistas, que trouxeram saúde e educação para dentro das comunidades, e a inclusão nas universidades, a demarcação dos territórios, luta principal dos povos originários, ainda não foi conquistada. “Até o último dia [do governo Dilma] lutamos para a demarcação de nossas terras, já sabíamos que estava vindo um período ruim pela frente. As demarcações foram negadas ao nosso povo, e nesse momento passamos a pensar que precisamos ocupar os espaços políticos, porque ninguém irá fazer por nós, temos que lutar por nós mesmos”.
Atualmente, os indígenas que buscam compor a bancada do cocar ainda precisam lutar pelo respeito e reconhecimento de suas capacidades, pois nem todos os eleitos compartilham das mesmas propostas. O atual presidente Jair Bolsonaro (PL) é contra a demarcação de terras indígenas e defende a tese do marco temporal, que diz que só podem ser demarcados locais que tenham comprovadas suas ocupações no exato período em que a Constituição foi promulgada.
Algo que desperta atenção ao ver a lista dos cinco deputados indígenas eleitos em 2022, é a presença da bolsonarista Silvia Waiãpi (PL), eleita deputada federal pelo Amapá. Silvia foi a primeira mulher indígena a entrar no exército brasileiro e teve participação no Governo Bolsonaro, em 2019, assumindo a Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI) do Ministério da Saúde. Em suas redes sociais, ela defende as políticas do atual presidente e defende também o agronegócio, divergindo das pautas da bancada do cocar. Segundo o portal de notícias G1, a deputada está sendo investigada por desvio de dinheiro de campanha para realização de procedimentos estéticos, a denúncia foi feita pelo Ministério Público (MP) Eleitoral. A reportagem tentou contato com a deputada para agendar uma entrevista, porém não obteve resposta.
Em Santa Catarina, a ativista indígena Jussara Inácio (PDT) foi candidatas à deputada estadual. Segundo ela, uma de suas motivações para entrar na política foi o impacto que sofreu por sua mudança da aldeia para a cidade. Ela conta que sua infância foi livre de racismo e preconceito. Por ter sido alfabetizada em escola indígena e passado sua infância na aldeia, junto com sua etnia, pode ter a experiência em sala de aula livre da descriminação que passou a sentir quando se mudou para Blumenau. “Ao sair das terras indígenas em que fui criada, eu fui violentada, de diversas formas, eu sofri o preconceito na pele, na mente e no emocional; passei a ter vergonha de me dizer indigena, tinha vergonha da minha identidade, porque isso me causava dores no meio social”, diz a ativista.
Após algum tempo, quando Jussara começou a estudar sobre as questões sociais e políticas, ela aprendeu a questionar o porquê sentia necessidade de esconder a própria identidade e com esse questionamento entrou na luta por seus valores, sua cultura e também pelo direito das mulheres. “Há mais de 500 anos, somos violentados, diminuídos e dizimados, mas nós resistimos, estamos lutando e faremos isso até a última gota de sangue. É sempre difícil a luta política de mulheres, indígenas, negros, mas não é impossível e ninguém vai nos calar”, afirma.
Os gritos de comemoração de independência nas passeatas de 7 de setembro dos últimos anos, entram cada vez mais em contraste com a desigualdade no território brasileiro desde a sua descoberta. Kerexu resume a questão com a seguinte frase: “A data que por muitos é vista como um símbolo da liberdade do povo brasileiro, apenas abre um questionamento: liberdade para que brasileiro?”.