Praia de Florianópolis, capital de Santa Catarina (Foto: Gabriel Rodrigues/Unsplash)

Melhoria na infraestrutura dos bairros fica de lado na revisão do Plano Diretor de Florianópolis

Enquanto a prefeitura promete "desenvolvimento", moradores questionam a falta de soluções para os problemas de infraestrutura da cidade

Reportagem de Warley Alvarenga

O grande destaque durante as audiências públicas distritais do Plano Diretor, ocorridas entre os dias 29 de junho e 27 de julho de 2022 foi a preocupação dos cidadãos com a infraestrutura da cidade. Enquanto alguns clamavam por melhorias estruturais, outros viam nas propostas da Prefeitura Municipal de Florianópolis (PMF) a solução para acabar com ocupações regulares de terrenos. O que talvez muitos desses cidadãos não saibam é do principal objetivo da PMF com a revisão do Plano Diretor: o crescimento urbano.

Assim como outros cidadãos, João Atalíbio usou seu tempo de fala durante a audiência pública do Campeche, no dia 27 de julho de 2022, para reclamar da falta de esgotamento sanitário que o bairro enfrenta. 

Temos a necessidade de ter esgoto no Campeche, mas a revisão do Plano Diretor pensa em adensamento e esquece a infraestrutura”, reclamou o morador.

A falta de esgotamento não é exclusiva do Campeche. Florianópolis tem cerca de 57% do esgoto coletado, de acordo com o último levantamento feito pelo Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), em 2020.

O pior índice entre as capitais da região Sul do Brasil.
Moradores do Campeche destacaram a falta de saneamento básico no bairro (Foto: PMF/Reprodução)

A presidente da Associação de Moradores da Lagoa do Peri (ASMOPE), Zoraia Guimarães, afirma que as preocupações dos moradores com infraestrutura são legítimas, mas lembra que o Plano Diretor não possui essa finalidade. “Todos queremos ser regularizados, ter água e saneamento, porém isso não se resolve com Plano Diretor, mas com política pública”, adverte Zoraia. Conforme instituído na Lei Complementar n° 482, de 2014, o Plano Diretor tem a finalidade de ordenar a ocupação territorial, baseado na garantia de desenvolvimento sustentável.

Para revisão do Plano Diretor, uma das principais propostas da PMF é a criação de novas centralidades. Ou seja, estimular a abertura de comércio em vias pouco ocupadas, para gerar centros comerciais mais próximos aos moradores locais. Segundo a PMF, isso reduziria o tempo gasto com deslocamento e todos os impactos sociais e ambientais consequentes disso.

No Campeche, a área apontada pela PMF como mais promissora para receber estímulos para construção de imóveis e abertura de comércio é a Avenida Campeche. De acordo com os diagnósticos apresentados no site oficial do Plano Diretor, a via possui menos de 50% de sua área utilizada. Quando se observa a região, porém, a justificativa para a subutilização do território fica bem clara: a avenida corta uma área plana e suscetível a alagamentos.

O próprio estudo técnico da PMF mostra o potencial de alagamento da avenida Campeche (Foto: Adaptação de imagem da PMF)

A preocupação dos moradores com a possibilidade de urbanização intensa vai além da Avenida Campeche. Grande parte do bairro está localizada na Planície Entre Mares, a maior área plana de Florianópolis, com aproximadamente 65 km². De solo predominantemente arenoso, a região corre riscos de inundações e alagamentos devido à maré alta e à falta de pontos para escoamento da água. A Planície Entre Mares também possui fauna e flora nativas da região que, de acordo com moradores, poderão ser prejudicadas com a urbanização, como ocorrido no Rio Tavares, que teve o rio que dá nome ao bairro poluído após a ocupação desordenada da região.

Gustavo Andrade, arquiteto e ex-membro do Conselho da Cidade, que atuou no órgão durante a criação da primeira proposta de revisão do Plano Diretor, explica que a Lei Complementar n° 482 já permite a urbanização das planícies. Ele destaca, porém, que é necessária compatibilidade entre o que será construído e a área de interesse. “Se urbanizar de qualquer jeito, será caótico ambientalmente. É preciso fazer infraestrutura antes, porém já não fazem para resolver os problemas que temos atualmente”, critica Gustavo, dirigindo-se à prefeitura.

Apesar de não haver promessas oficiais por parte da PMF a respeito, outros assuntos presentes nas conversas dos moradores locais são sobre a possibilidade de que o Plano Diretor regularize construções e cause queda no valor dos imóveis, dada a alta oferta que o Campeche terá com novos empreendimentos. Gustavo alerta que essas promessas não passam de boatos. “Isso é uma falácia! Colocam falsas expectativas na população para que mais pessoas sejam favoráveis à aprovação. A revisão do Plano Diretor não tem esse objetivo”, alerta o arquiteto, que completa: “não é assim que o mercado funciona, novas construções apenas valorizam o local. Temos como exemplo Balneário Camboriú”.

De acordo com levantamento realizado em maio de 2022 pelo Agente Imóvel, portal que acompanha o mercado imobiliário, o preço médio do metro quadrado no Campeche é superior a R$ 9 mil, com destaque para algumas ruas do bairro, próximas à praia, onde o custo supera R$ 20 mil.

Ruas próximas ao mar são as mais valorizadas do Campeche (Imagem: Agente Imóvel/Reprodução)

De tudo que a revisão do Plano Diretor propõe para o Campeche, o principal ponto de discordância, por parte dos moradores, é a verticalização do bairro. Conforme a proposta apresentada pela PMF, o aumento da viabilidade para construção de imóveis pode chegar até oito pavimentos no Campeche, desde que o construtor atenda a requisitos, como incentivo à habitação social e desenvolvimento econômico. O Plano Diretor atual permite a construção de edificações com até dois pavimentos no bairro, sem considerar áreas compartilhadas, como subsolo, pilotis e ático, o que aumenta a altura dos prédios, mas não conta como pavimento.

De acordo com a proposta da PMF, a construção de imóveis com maior número de pavimentos incentiva a criação de moradias multifamiliares e ajudaria na diminuição do déficit habitacional que a Região Metropolitana de Florianópolis enfrenta. Mais de 26 mil famílias vivem em habitações precárias na região, de acordo com os últimos dados levantados pela Fundação João Pinheiro (FJP), especializada em pesquisa e estatística, em parceria com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), entre 2016 e 2019.

Segundo Alencar Deck, morador do Campeche e membro da União Florianopolitana de Entidades Comunitárias (UFECO), caso a revisão do Plano Diretor seja aprovada da forma que está sendo proposta, os bairros de Florianópolis não terão a infraestrutura necessária para suportar o crescimento populacional. “O Plano Diretor atual suporta até 750 mil habitantes. Caso seja aprovado como está, o número pode aumentar para até 1 milhão. A cidade não vai aguentar!”, alerta Alencar.

Eugênio Gonçalves, membro do Conselho da Cidade e líder do Conselho Comunitário da Costa de Dentro (CODEN), reforça o alerta de Alencar. Segundo ele, não há saneamento básico adequado, faltam equipes nos postos de saúde, segurança pública e cuidados com as unidades de conservação ambientais, além de problemas constantes de distribuição de energia elétrica, abastecimento de água e limpeza urbana.

Como pensar em uma nova cidade se não damos conta da atual?”, questiona Eugênio.

Enquanto a PMF insiste na proposta de um Plano Diretor que visa o “desenvolvimento” da cidade a partir do crescimento, sem antes resolver problemas de infraestrutura dos bairros, moradores de diferentes distritos se mobilizaram para apresentar suas próprias diretrizes nas audiências públicas realizadas nas regiões Leste e Sul de Florianópolis. É o caso da Associação de Moradores do Campeche (AMOCAM) que, no dia 22 de junho de 2022, em assembleia organizada por líderes comunitários de diferentes gerações, apresentou a história do Plano Diretor e detalhes sobre o atual processo de revisão para mais de 80 pessoas.

Assembleia da AMOCAM, realizada na Igreja Nossa Senhora do Coração de Jesus, discutiu detalhes do Plano Diretor com os moradores (Foto: Fabiola de Souza/Reprodução)

Para o morador do Campeche Ataíde da Silva, a revisão do Plano Diretor deve ser pensada e discutida com abrangência de temas e integrada à sociedade. “O Plano Diretor não é só arquitetura. É sociologia, é história, é meio ambiente, é a sociedade! Temos que pensar em tudo disso!”, afirma Ataíde.

Conforme instituído na Resolução n° 25, de 2005, do Estatuto das Cidades, a ampla participação popular é obrigatória em processos de revisão do Plano Diretor. Resolução que somente foi atendida após a intervenção do Ministério Público de Santa Catarina (MPSC) que, em abril de 2022, acatou o pedido de movimentos comunitários contrários à exclusão da sociedade, provocada pela PMF, no processo de revisão do Plano Diretor. “Procuramos o MPSC para que ocorra participação popular, porque só quem tem conhecimento sobre as comunidades são os moradores”, diz Eugênio.

Cronograma questionável

Após a intervenção do MPSC para garantir maior participação popular, a PMF definiu, em 12 de maio de 2022, o novo cronograma do processo de revisão. Em um intervalo de 23 dias foram realizadas 13 audiências públicas distritais, além de concessão de espaço para consulta pública no site oficial do Plano Diretor, disponível para manifestações até o dia 12 de agosto de 2022.

Conforme a programação, cada audiência teve duração de 4 horas, com 2 minutos para manifestação individual dos cidadãos e cinco para fala de líderes comunitários e representantes de entidades da sociedade civil. Para reforçar a ideia de que houve ampla participação popular no processo de revisão do Plano Diretor, a PMF promoveu todas as audiências com o slogan: “A Cidade quer ouvir você!”.

Com tempo cronometrado, cada morador teve apenas 2 minutos para se manifestar (Foto: PMF/Reprodução)

O cronograma e metodologia foram questionados por movimentos comunitários devido ao curto intervalo de tempo entre as audiências e o pouco espaço de fala destinado aos cidadãos. “A participação popular parece não ser bem-vinda. Não serão realizadas oficinas como em 2014 e o Campeche terá um único momento de participação”, reclama Alencar. Como ele lembra, em 2014 a revisão do Plano Diretor contou com oficinas comunitárias, em um processo que durou oito meses.

Em justificativa publicada no dia 13 de junho de 2022, no site oficial do Plano Diretor, a PMF considera que constrói um projeto de lei participativo e democrático, que está explicando conceitos básicos e apresentando informações em linguagem acessível para toda a sociedade. Entretanto, durante as falas de grande parte dos cidadãos nas audiências acompanhadas por esta reportagem, foi notável o desconhecimento com o que está sendo proposto pela PMF, comprovando que a estratégia adotada não funcionou.

A presidente da AMOCAM, Roseane Panini, reforça a importância da ampla participação popular na revisão do Plano Diretor, mas destaca que, antes disso, é necessário que a sociedade saiba o que de fato está sendo proposto pela PMF. “Cada pessoa precisa saber o que eles estão querendo mudar para dar a sua opinião. É a sua opinião que vale para o Plano Diretor, afirma Roseane. Segundo a PMF, a proposta final para revisão do Plano Diretor está sendo construída junto à sociedade. Até o fechamento desta reportagem,  apenas estudos técnicos foram disponibilizados pela PMF.

Enquanto as audiências distritais aconteciam, a PMF destinava sua atenção e recursos para divulgar o Plano Diretor na internet e lançar editoriais publicitários pagos em portais de grande circulação na cidade, como o G1 Santa Catarina e o ND Mais. Em outra frente, movimentos formados por empresas privadas e entidades de diferentes setores, como FloripAmanhã e o Movimento Floripa Sustentável, que favoráveis à proposta de Plano e à metodologia aplicada, comemoravam o andamento acelerado do processo.

Por meio de carta aberta publicada em seu site oficial, em 17 de maio de 2022, o Movimento Floripa Sustentável diz que se não pode esperar mais tempo para aprovar a revisão do Plano Diretor devido aos atuais problemas de estruturais da cidade. “O que a cidade não pode conviver mais é com o absurdo de transportar diariamente mais de 60 mil pessoas entre o Norte da Ilha e o Centro, a demolição diária de construções irregulares, assim como a construção clandestina de barracos insalubres, sem banheiros, luz e água – a título de “habitação social”, defende a carta.

A ideia é reforçada por Rodrigo Vieira, morador do Campeche e Diretor de Desenvolvimento Urbano da Associação Comercial e Industrial de Florianópolis (ACIF). Ele reafirma que a cidade não pode esperar mais tempo para aprovar a revisão. Rodrigo diz que desde a última revisão do Plano Diretor, em 2014, foram abertas 30 mil novas inscrições imobiliárias, sendo somente 900 regulares. “Para quem é contrário, a gente tem mais dois anos para ficar discutindo? Para quê? A cidade já sangra por causa das irregularidades.”, ironiza Rodrigo.

Conforme instituído na Lei Complementar n° 482, o Plano Diretor deve ser revisado no máximo a cada dez anos. Vigente desde 2014, o Plano Diretor atual é válido até 2024, certificando que há tempo hábil para realização de mais estudos, oficinas comunitárias e realização de novas audiências públicas para discussão de propostas.

Fluxograma da PMF não garante ampla participação popular na maioria das etapas do processo (Foto: PMF/Reprodução)

Depois da realização de todas as audiências distritais, seguindo o cronograma, a PMF deveria encaminhar a proposta final de revisão para manifestação do Conselho da Cidade. Mas a pedido de movimentos comunitários, em 22 de julho de 2022, o MPSC interveio novamente no processo de revisão, para que a PMF apresente uma proposta concreta à sociedade antes do encaminhamento para o Conselho da Cidade.

Apesar da nova intervenção do MPSC, o cronograma não sofreu grandes alterações. A PMF alterou do dia 01 para 08 de agosto a apresentação da proposta final à sociedade em audiência geral. A PMF insistiu que a proposta final será resultado do que for apresentado pelos cidadãos nas audiências distritais e na consulta pública. “Essas audiências públicas consultivas são meras escutas à população, sem qualquer garantia de efeito prático no texto final do projeto”, critica a presidente da AMOCAM, Roseane Panini. Mesmo com a apresentação em audiência pública, a proposta final será encaminhada para manifestação do Conselho da Cidade.

Os conselheiros da cidade

Instituído em 2014, durante a revisão do Plano Diretor daquele ano, o Conselho da Cidade tem como finalidade principal aconselhar a PMF em processos de planejamento, desenvolvimento urbano e gestão da cidade, especialmente na elaboração e revisão de Planos Diretores. Mesmo sem poder de decisão, o Conselho da Cidade pode elaborar propostas e sugerir mudanças à PMF.

De acordo com a PMF, o maior espaço de fala no Conselho da Cidade pertence à sociedade civil (Arte: PMF/Reprodução)

O Conselho da Cidade é composto por 40 representantes de diferentes setores da sociedade civil, como organizações não-governamentais, líderes comunitários, sindicatos, entidades profissionais e empresariais, além de secretarias do próprio poder público. Apesar de parecer que a sociedade civil organizada possui maior espaço de fala no Conselho da Cidade, a presença de entidades reconhecidas por incentivar a celeridade no processo de revisão do Plano Diretor se destaca dentro do órgão.

Representações da sociedade civil presentes no Conselho da Cidade (Arte: Warley Alvarenga)

Além da grande presença de representantes empresariais, outras entidades ligadas ao setor econômico de Florianópolis atuam no Conselho da Cidade, como a Associação FloripAmanhã, que se apresenta como uma “iniciativa de cidadãos conscientes, dos mais diversos setores, que amam Florianópolis e desejam tornar a cidade cada vez melhor” e o Movimento Floripa Sustentável. Ambas as entidades foram presididas, simultaneamente, por Zena Becker, empresária do ramo da administração de imóveis e marketing, até junho de 2022.

 Zena deixou as presidências das entidades a convite do prefeito Topázio Neto (PSD) para assumir a Coordenação de Projetos Especiais da PMF. A empresária que, durante 3 anos esteve presente no Conselho da Cidade, sempre lutou para garantir o espaço de fala do setor econômico, e não das comunidades, agora atua diretamente na elaboração da revisão do Plano Diretor.

Zena Becker (no centro) agora tem poder de decisão dentro da PMF - (Foto: Floripa Sustentável/Reprodução)

Em entrevista exclusiva concedida para o portal ND Mais, no dia 02 de junho de 2022, após tomar posse na Coordenação de Projetos Especiais, Zena deixou claro quais seus objetivos dentro da PMF: “é um novo desafio, mas sempre preocupada com a sociedade civil. Quero dar voz e protagonismo para as entidades e empresários que queiram continuar a trabalhar por uma cidade inclusiva”.

Caso o cronograma da PMF prossiga sem alterações, após manifestação do Conselho da Cidade, a proposta final será encaminhada para votação na Câmara Municipal do Vereadores e o processo de revisão do Plano Diretor será concluído até dezembro de 2022, com dois anos de antecedência.