De olho em 2030: Florianópolis trabalha para ser primeira cidade Lixo Zero do país

Ações para reduzir envio de resíduos sólidos a aterros sanitários miram em futuro mais sustentável

23 de setembro de 2021

Reportagem de Marcos Albuquerque

Entre as prateleiras do mercado que fica próximo ao condomínio onde mora no Bairro Itacorubi, região central de Florianópolis, Everaldo José Schörner, 41 anos, escolhe os produtos que deve levar para casa. Leite, batata, cebola, pão para o café, sabonetes, carnes e molho de tomate. Da cesta, os itens vão direto para a sacola e da sacola, ocupam os armários de casa, a geladeira, gavetas, até que sejam utilizados. Posteriormente, as embalagens vazias, os restos orgânicos e outros resíduos acabam todos na lixeira. Seria só mais uma ação cotidiana realizar o descarte desses materiais, mas para alguns moradores de condomínios do bairro da capital catarinense o processo de retirada do lixo de dentro de seus lares ganhou novas nuances no último mês de junho. Depois de uma alteração feita pela Prefeitura Municipal, a coleta seletiva passou a ser realizada em um formato batizado como Flex, um sistema onde são coletados separadamente diferentes tipos de resíduos em cada dia da semana para que possam ser melhor destinados e, em sua maioria, reciclados ou reutilizados. A ação é uma das medidas adotadas em Florianópolis para que a capital seja a primeira cidade Lixo Zero até o ano de 2030 no país.

Atualmente, cerca de setecentas toneladas de lixo são geradas todos os dias na cidade, de acordo com dados da Secretaria Municipal de Meio Ambiente. Desse montante, mais de 90% dos materiais acabam inutilizados e deixam a ilha em caminhões com destino a Biguaçu, onde são descartados em um aterro sanitário no interior do município, distante 45 quilômetros do ponto de onde partiram. Na próxima década, o objetivo é mudar drasticamente esse cenário. Do total de lixo produzido em 2030, o sistema de gestão de resíduos da cidade deve recuperar 90% daqueles considerados orgânicos, como restos de frutas, produtos verdes do jardim e quintal; e 60% dos materiais recicláveis secos, como vidro, plástico, metal e papelão.

Centro de Gerenciamento de Resíduos - CGR Biguaçu, local para onde é levado o lixo de Florianópolis (Foto: Divulgação Veolia Environnement S.A)

No Vista Real, residencial onde Everaldo mora, o lixo está sendo recolhido agora em quatro frações: Primeiro os rejeitos, que diferente dos demais materiais não possuem outra destinação senão o descarte; em seguida os recicláveis, depois os orgânicos e por fim, objetos de vidro. O intuito de Florianópolis é usar o bairro Itacorubi, com os mais de 100 condomínios que aderiram ao programa, como uma região teste. Ao todo, cerca de 20 mil pessoas estão mudando seus hábitos de descarte dos resíduos e adequando-os ao novo sistema.

Local destinado para os resíduos no Vista Real (Foto: Everaldo José Schörner)

Assim que a coleta Flex for implementada de forma integral na região e se tornar funcional, a ideia é estender o sistema para outros nove bairros da cidade em outubro, localizados entre a Bacia do Itacorubi e o Centro. Quando chegar aos condomínios do Santa Mônica, João Paulo, Córrego Grande, Saco dos Limões, Carvoeira, Agronômica, Pantanal, Trindade e Itacorubi, o lixo de 17,5 mil lares deve ser coletado de forma mais sustentável.      

As ações da coleta Flex, no entanto, ainda não englobam os demais tipos de moradias. Isso porque, de início, implementar a nova rotina de descarte é mais fácil em locais onde a gestão do lixo já passava por certas etapas devidamente organizadas e estruturadas anteriormente. “O condomínio é uma minicidade. Isso facilita o trabalho. Você tem dentro do condomínio uma gestão. A gente capacita esses gestores, síndicos. Essa foi a nossa estratégia. Por ora, vamos atuar apenas com condomínios, sejam verticais ou horizontais”, esclarece Ulisses Laureano Bianchini, superintendente de gestão de resíduos da Secretaria Municipal de Meio Ambiente e um dos personagens à frente da coordenação das mudanças em relação à coleta na cidade.

A flexibilização na coleta seletiva pretende desviar do aterro principalmente os orgânicos e já apresenta resultados positivos. No ano passado, o município contabilizou um desvio de 6,8% dos orgânicos do aterro sanitário. Em dois meses de coleta Flex, a quantidade que deixou de ser levada ao município de Biguaçu chegou a mais de 9%. Ulisses ressalta que pode parecer pouco para alguém que vê os números de fora, mas garante que o resultado é muito produtivo para o período observado.

Além da coleta Flex, outros projetos foram implementados para uma destinação mais sustentável dos resíduos. Em caráter de entrega voluntária, cinco Ecopontos espalhados pelo município recebem diferentes tipos de materiais sólidos, desde entulhos, pedaços de madeira, pilhas, metais e pneus, até o esqueleto do computador comprado quando a internet ainda era discada. Diante da diversidade de materiais recolhida em um mesmo local, uma regra de utilização é importante: cada tipo de produto deve ser descartado separadamente, em embalagens exclusivas.

Ao ampliarem as possibilidades para a população, os Ecopontos buscam reduzir principalmente o descarte irregular de determinados componentes do lixo em áreas incorretas, como ainda acontece em pelo menos 100 pontos da cidade,  segundo a gerente de projetos da Companhia de Melhoramentos da Capital (Comcap) e engenheira sanitarista ambiental, Karina da Silva de Souza. Ela lembra que a ação gera prejuízos ambientais e também ameaça a saúde pública. “Se tornam criadouros de mosquitos da dengue”. A boa notícia é que a procura pelo serviço vem aumentando e, segundo dados da Prefeitura Municipal de Florianópolis, os locais recebem em torno de 600 entregas por dia. Com isso, um edital já foi lançado para que outros oito Ecopontos passem a integrar o contingente de recolhimento.

As folhas caídas da árvore do quintal, o galho derrubado pela última tempestade e outras vegetações retiradas do jardim podem ser descartados na coleta de verdes. Em cada bairro, ela acontece cerca de sete vezes ao ano. O que sobrou das plantas vira matéria-prima depois da coleta e um processo de trituração que acontece no pátio de compostagem da capital. No espaço, localizado no bairro Itacorubi, uma máquina transforma todos os verdes em micro pedaços verdes, que ganham o nome de cepilho. O material vai parar nos jardins públicos, canteiros centrais de avenidas, sistemas de compostagem e demais lugares onde possam servir como mantenedores da umidade do solo e adubo para novas plantas.

É também pela lógica de devolução de materiais orgânicos para o local de onde vieram que outra medida incentivada na cidade pode ajudar Florianópolis a ser referência no fim da década. O tratamento doméstico do lixo orgânico através da criação de composteiras faz parte do itinerário sustentável das políticas públicas municipais há algum tempo. Um dos exemplos é a capacitação oferecida pela Prefeitura no Jardim Botânico, no centro, onde a população aprende a realizar o descarte da fração de orgânicos instalando o sistema em um pequeno espaço de suas residências. Diana de Souto Luggeri, moradora do bairro do Morro das Pedras, região sul de Florianópolis, participou dessa capacitação, que ajudou a aprimorar o uso de composteiras que ela já vinha fazendo. “Eu comecei há uns 4 anos atrás, vendo vídeos na internet, eu mesmo fiz a minha primeira composteira,  com baldes de óleo, de uma forma bem amadora.” Ao lado dos filhos, com quem faz questão de debater questões de responsabilidade ambiental, transforma hoje grande parte dos resíduos orgânicos domésticos nas três composteiras que tem no pátio de casa. “Mudei radicalmente minha visão do que é lixo, além de que utilizo a terra, o húmus de minhoca, na horta e nas plantas. Gera um biofertilizante poderoso. Só vejo vantagens e influenciei várias pessoas a fazerem o mesmo.”

 No Parque Ecológico do Córrego Grande, outro programa, o Família Casca, permite que moradores levem resíduos orgânicos de suas casas para que sejam compostados em caixotes de madeira presentes no local. Pátios comunitários de compostagem também estão inseridos no ciclo de transformação dos orgânicos da cidade em diferentes bairros.

Um objetivo de costas para o passado

A destinação final do lixo em Florianópolis é um desafio antigo. Era no mar que a maioria dos dejetos e resíduos sólidos gerados nas residências de regiões costeiras eram descartados nos séculos passados. Com a inexistência de infraestrutura adequada para a gestão dos materiais e a falta de preocupação com as consequências do descarte incorreto no ambiente, deixar que as ondas diluíssem tudo que não era mais desejado dentro das casas tornava-se uma escolha confortável e prática. O período foi assim retratado pelo historiador Oswaldo Rodrigues Cabral, na obra ‘Nossa Senhora do Desterro’, publicada em 1979.

Depois de ser lançado no mar, nos anos 1950 o lixo da cidade passou a ser acumulado no manguezal do Itacorubi (Foto: Marcos Albuquerque)

De soluções pouco sustentáveis, a mudança de postura sobre o tema começou somente algumas décadas atrás, com a criação, por exemplo, de projetos de sensibilização da população. Karina da Silva de Souza lembra que a cultura de lixo zero teve início nos anos 80, com a criação do programa Beija-Flor. Assim que saiu do papel, a iniciativa realizou ações em 10 comunidades e mais tarde foi expandida para outras regiões do município. “Naquela época já se tinha um modelo muito inovador de gestão de resíduos, onde eram tratados localmente os resíduos orgânicos na comunidade através da compostagem e da separação dos recicláveis secos, que eram comercializados”.

Projeto Beija-Flor sendo divulgado no final da década de 1980 (Foto: Arquivo Comcap)

A cidade, que em 1994 foi uma das primeiras a implementar um sistema de coleta seletiva pública, teve o decreto de Lixo Zero promulgado no ano de 2018. Fruto de pressão popular e amplamente debatido em audiências públicas, a normativa que institui as mudanças no sistema de coleta, tratamento e descarte de resíduos na capital catarinense foi, antes de tudo, uma conquista da sociedade civil. “A lei veio de baixo para cima”, lembra Rodrigo Sabatini, presidente do Instituto Lixo Zero Brasil, depois de frisar que foi “em 2009, quando alguns condomínios, escolas e restaurantes começaram a implementar o sistema” que o movimento ganhou força.

Baseado na Política Nacional de Resíduos Sólidos, de 2010, a definição das ações a serem desenvolvidas na próxima década foram feitas a partir de um rigoroso trabalho de pesquisa para conhecer o perfil do lixo produzido na cidade. A gerente de projetos da Comcap, Karina, conta que primeiro foram definidas diferentes rotas: uma cortando a região central, outra chegando em bairros mais afastados, em vilas gastronômicas, e outra em área com forte perfil comercial. A divisão de percurso também dedicou atenção aos bairros onde o lixo vem da fartura e aqueles onde o lixo é gerado em residências de famílias de baixa renda. O material trazido de cada uma dessas rotas, por caminhões em dedicação exclusiva, foi analisado individualmente.

Depois de muita matemática e a velha conhecida média ponderada, o retrato do lixo ficou pronto. Ao analisar individualmente os materiais que chegaram das diferentes rotas na caçamba de caminhões, foi possível conhecer o potencial dos resíduos gerados no município, etapa decisiva para o estabelecimento das metas até 2030.

População como sujeito ativo na mudança

As instruções para auxiliar os moradores na adaptação à dinâmica Flex estampam um cartaz na parte interna do elevador do prédio onde Everaldo José Schörner mora. Com letras bastante visíveis, cores fortes e um calendário apontando a dinâmica de recolhimento dos resíduos, o informativo tenta chamar a atenção dos produtores de lixo que sobem e descem todos os dias. É a partir do índice de participação da população no movimento que deve resultar grande parte do sucesso ou do fracasso no atingimento das metas da cidade até o ano de 2030.

Essa reeducação sobre o último adeus ao lixo nas residências e demais ambientes está entre os principais lemas do Lixo Zero. Segundo definição da ZWIA – Zero Waste International Alliance, o movimento “busca guiar as pessoas a mudar seus modos de vida e práticas com o intuito de incentivar ciclos naturais sustentáveis”. Através dessa guinada de comportamento, pretende fazer com que os materiais possam ser “recuperados ou reutilizados após o consumo”, impedindo que os mesmos terminem em aterros ou incinerados.

Alunos do ensino fundamental participam de aula de educação ambiental no Parque Ecológico do Córrego Grande (Foto: Marcos Albuquerque/PMF)

Esforços para sensibilizar a população sobre o tema já acontecem há pelo menos duas décadas em Florianópolis. No âmbito público, aulas de educação ambiental em diferentes projetos recebem em torno de sete mil pessoas por ano, desde estudantes do ensino básico, universitários, até grupos de empresas, de acordo com a gerente de gestão ambiental da Comcap, Daiana Bastezini. O trabalho de conscientização também acontece nas escolas municipais e nos órgãos públicos. Em qualquer um dos ambientes as ações são pautadas na hierarquia de gestão de resíduos, que traz a redução, reciclagem e reutilização dos materiais como fatores chave para uma relação mais sustentável com o lixo.

Tudo isso acontece para lembrar a população de que o Lixo Zero em 2030, apesar de ser uma meta estabelecida em lei pelo poder público, demanda muito mais que ações governamentais para ser atingido. “O gerenciamento de resíduos tem uma relação muito íntima com as pessoas porque ele está relacionado aos nossos hábitos diários, o nosso poder de decisão de comprar uma coisa ou não, escolher o retornável ou descartável”, destaca a engenheira Karina. Para ela, o sentimento é de que grande parte da população ainda mantém uma postura de livramento depois do consumo ou utilização de qualquer produto. “Quando você compra uma banana, a banana é tua. Quando você come a banana, tu acha que a casca não é mais sua, é do governo. Um problema para o governo resolver”.

Nicole Caldas de Freitas Berndt, moradora de Florianópolis, ativista ambiental e digital influencer, vai na contramão da postura comentada pela gerente de projetos da Comcap. Desde que conheceu o movimento Lixo Zero em 2016, por meio de uma revista, passou a repensar antigos hábitos de consumo e buscar maneiras mais sustentáveis para o descarte dos resíduos gerados em casa. “O termo me intrigou e fui pesquisar. Foi uma viagem sem volta”. Ao lado do marido e de dois filhos, Nicole vem compartilhando a nova rotina na internet e tenta inspirar os mais de 140 mil seguidores que tem em suas redes sociais a fazerem o mesmo.

No projeto Família Casca, a influencer descarta fração de orgânicos recolhidos em casa (Foto: Arquivo pessoal)
Nicole e a família mostram as escovas de dente de bambu, mais sustentáveis que as convencionais (Foto: Arquivo pessoal)

Entre uma publicação e outra, a influencer traz questionamentos, dicas, experiências e dados científicos sobre a temática do lixo, meio ambiente e sustentabilidade. A produtora de conteúdo conta que recebe mensagens de diversas pessoas impactadas pelos seus posts, a maioria falando sobre a pretensão de adotar novas práticas. “Eu vejo diariamente a consciência das pessoas mudando, a nossa família podendo inspirá-las no seu dia-a-dia”.

Nesse balanço, entre aqueles que aderem ao manuseio mais correto do lixo e outros que seguem insistindo em velhos comportamentos, o trabalho para obtenção dos resultados esperados em 2030 tem pela frente uma variável ainda incerta. Para a cidade ser efetivamente Lixo Zero, o esforço de cada um dos moradores será crucial, como salientou Karina. “O sistema é integrado, a responsabilidade é compartilhada, cada um tem que fazer sua parte nessa cadeia para que esse ciclo seja sustentável”.

Para onde irá o material coletado?

Ter a população como sujeito ativo nas ações para o cumprimento das metas de Lixo Zero na próxima década não é o único dos desafios à espreita no horizonte. O lixo orgânico recolhido hoje na coleta Flex, que soma em torno de 15 toneladas por dia, é encaminhado para o pátio de compostagem da Comcap, no Bairro Itacorubi. No local, o material é submetido a um processo que o transforma em matéria-orgânica, possibilitando assim o retorno para o meio ambiente. Com o aumento esperado de material nos próximos anos, quando 90% dos orgânicos devem deixar de ir para o aterro, a capacidade de tratamento de todo o montante na cidade precisará ser reforçada. Se o pátio de compostagem municipal mantiver suas características espaciais e de processamento atuais, que é de mil toneladas por mês, em 2030 não será suficiente para a destinação do total coletado.

Mesmo com estudos preliminares para a solução do problema, ainda não existem planos concretos para a construção de novos pátios do gênero. O reduzido espaço geográfico da cidade e o fato de que grandes porções do território são áreas de preservação serão características decisivas para a elaboração dos planos de ação, segundo o superintendente Ulisses Laureano Bianchini. “Uma compostagem tem toda uma questão de distância de residências, questões legais e ambientais. Então talvez  a gente tenha que gastar mais no transporte de resíduos para outros locais, até mesmo outras cidades, para finalizar o tratamento.” Parte da solução pode estar há 190 quilômetros da capital, onde uma tecnologia já vem sendo testada para agilizar o processo de compostagem dos orgânicos. O método experimentado em Içara, no litoral sul do estado, poderia ser aplicado em Florianópolis e resolver parte da dificuldade imposta pela limitação geográfica da ilha. “Aqui no pátio, para tratar 30 toneladas, precisamos de 4,5 mil metros quadrados. Lá o tratamento de 40 toneladas é feito em uma área equivalente a um terço da nossa e com mais velocidade.”

A necessidade de aumento da estrutura é válida também para o processo de destinação final dos recicláveis secos. Hoje em dia, depois de coletados, esses materiais são entregues para cooperativas de triagem. Existem sete delas no município e o trabalho, realizado de forma quase exclusivamente manual, abrange mais de 200 famílias. Em 2030, espera-se que pelo menos 60% dos recicláveis sejam recuperados, quantidade bastante superior aos 5% atuais. Como adiantou Ulisses, o possível problema do futuro já dá sinais durante alguns meses do ano na cidade, quando as praias ficam lotadas na temporada de verão. “Com a chegada dos turistas, tem tanto material que não temos estrutura para a triagem de tanta coisa. Acho que um dos grandes desafios para o futuro vai ser investir em tecnologias para o tratamento desses resíduos.” Uma das opções, segundo o superintendente, seria a implantação de equipamentos que automatizassem parte do processo, como ocorre em centros de triagem da cidade de São Paulo. “Já é uma realidade nacional, não mais só estrangeiras”.

Junto a outros obstáculos, como a erradicação dos pontos de descarte irregular, uma face do ciclo de destinação dos resíduos, que acendeu alerta na pandemia, figura como um problema a ser superado. Com a redução temporária da produção de lixo nos primeiros meses de incursão da Covid-19 no país, catadores informais da Grande Florianópolis passaram a vir de outras cidades para a capital. Sem limitações, transportaram porções significativas dos recicláveis secos para outros municípios e de lá, os comercializaram. O valor de venda desses materiais, como plásticos e vidros, aumentou no período. A prática, embora ainda não seja proibida por lei, atrapalha a dinâmica local. “Quando nossa coleta passa, o lixo já não está mais lá. É um desvio do aterro que acaba não sendo computado”, afirma Karina. Essa fuga de parte dos resíduos pode limitar o controle das ações na cidade e apagar dados importantes para a análise dos resultados do Lixo Zero no futuro. “As nossas metas são atingidas com o peso. A gente faz o roteiro, coleta, pesa na balança rodoviária e fica computada uma série histórica do que é recolhido por mês em cada região. Como a coleta informal acaba pegando essa carga, isso não é computado. É um desvio do aterro que não é registrado”, segue a gerente de projetos da Comcap.

Equipes municipais buscam recicláveis nas ruas da cidade (Foto: Divulgação/PMF)

Transformar o sistema de coleta é um passo já em curso. Adaptar a etapa de tratamento virá como garantia para que a cidade possa continuar rumo a um futuro cada vez mais responsável na dinâmica de interação com os resíduos. Diante das intempéries que podem surgir, Ulisses ressalta que para superá-las será preciso cultivar uma conduta avessa à individualidades, lembrando de que as metas para o Lixo Zero são integrantes de “uma cadeia que precisa ser pensada sempre coletivamente”.

Legado dos novos rumos do lixo

Dona de belas praias, incubadora de novas tecnologias, a ponte como cartão-postal e um sistema de coleta seletiva que desvia do aterro sanitário a maior parte dos resíduos da cidade: essa é a história que Florianópolis trabalha para poder contar. Tendo um longo caminho pela frente até 2030, a perspectiva atual parte de uma ótica equilibrada. “Os resultados atuais nos deixam muito otimistas. Que dá certo a gente já sabe, só que depende de muitos fatores. Da população, dos investimentos, da questão econômica do município, políticas. As metas são ousadas”, avalia Ulisses.

Ao redor do mundo, já existem exemplos de cidades que conseguiram alinhar todos esses fatores, são casos de sucesso e podem servir como inspiração. “Nós temos cidades como São Francisco, na Califórnia, com um milhão de habitantes, o dobro de Florianópolis, onde só 13% dos resíduos vão para o aterro”, destaca o presidente do Instituto Lixo Zero Brasil, Rodrigo Sabatini. Para ele, a capital catarinense está traçando um caminho positivo e mais do que necessário. “O Lixo Zero é o futuro por obrigatoriedade. Primeiro porque a gente não vai ter um futuro de abundância. Ou a gente vai ter um futuro de equilíbrio ou um futuro de recessões. Nos dois futuros o Lixo Zero é mandatório”, referindo-se às consequências do uso desenfreado dos recursos naturais nas últimas décadas.

Reduzir a exploração desses recursos é um dos benefícios que a mudança na dinâmica de coleta de resíduos vai trazer. A partir do momento em que os materiais são coletados em diferentes frações, o que antes acabaria se transformando em rejeito e adquirindo caráter de inviabilidade, volta a fazer parte do setor produtivo. “Deixamos de causar um impacto no meio ambiente, de explorar ainda mais matéria-prima virgem”, explica Ulisses Bianchini.

Além de alinhar as políticas da cidade a um cronograma sustentável, a nova conduta trará benefícios econômicos. Em 2020, a cidade ganhou mais de R$ 8 milhões com a coleta seletiva, entre o dinheiro que deixou de gastar com aterro e aquele decorrente do lucro dos processos de reciclagem. Se atingir a meta da década, Florianópolis vai economizar mais de R$ 15,7 milhões em custo com a redução de envio para aterros sanitários e gerar um saldo ainda mais expressivo por conta da destinação eficaz da parcela de orgânicos e recicláveis. “Passaremos a reinserir no ciclo econômico ou da natureza um valor maior do que R$ 40 milhões”, aponta o Secretário Municipal do Meio Ambiente, Fábio Braga.

Para a influencer e ativista Nicole Berndt, um legado importante do Lixo Zero em Florianópolis será a mudança de cultura sobre as responsabilidades de cada cidadão com o ambiente. “O futuro é esse e eu já estou educando meus filhos para isso”, opinião parecida com a de Ulisses: “Estamos vendo que precisamos fazer a diferença, mudar nosso comportamento para poder ter uma qualidade de vida melhor e deixar isso para as gerações futuras”.