06 de junho de 2022
Reportagem de Rodrigo Barbosa e Jaqueline Padilha
Fotos de Rodrigo Barbosa
Eram pouco mais de 21h do dia 11 de novembro de 2021 na Maloca, como é conhecido o alojamento dos estudantes indígenas da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Uma menina de dez anos abre a cortina que serve como porta de seu quarto. Passa pela ‘sala’, que leva na parede o nome dos ancestrais daqueles que naquela casa vivem, vê um ou dois vizinhos estudando, e chega à área externa. À direita, vê a cozinha, recém construída, mas segue na direção contrária. Dentro do banheiro feminino, com pinta de vestiário, tudo branco. Àquela altura, quatro chuveiros ainda funcionavam por ali. Os outros sete ou oito, serviam apenas para lembrar que aquele banheiro já viveu dias melhores. A garota escolhe um dos quatro chuveiros e vai tomar banho antes de se deitar. Tudo dentro da rotina.
Mas, minutos mais tarde, ela quase perderia a vida. E, no caso dela, isso também, infelizmente, costuma fazer parte da rotina.
“Quando explodiu o chuveiro, o fio derreteu e pegou na parede. Minha filha estava trancada dentro, foi se encostar na parede e começou a tremer lá dentro”, relembra sua mãe, Laura Parintintin, indígena do povo Parintintim e estudante de Ciências Sociais da UFSC.
Quebrando o protocolo do alojamento, estudantes homens entraram correndo no banheiro feminino e arrombaram a porta da cabine a tempo de salvar a vida da menina que se debatia dentro do chuveiro. Foi por pouco.
A situação dos banheiros do local não era desconhecida da Administração Central da Universidade Federal de Santa Catarina, como conta Cristhian Priprá, indígena do povo Xokleng e estudante do curso de Educação do Campo.
Cristhian é atualmente um dos guardiões de mais de uma dezena de documentos que comprovam a ciência da Reitoria da UFSC sobre os problemas do local. Dentre estes, está o que denuncia a condição dos chuveiros ainda em 2018, três anos antes do acidente com a filha de Laura.
O choque quase letal de uma criança de 10 anos foi apenas uma das várias tragédias anunciadas, avisadas e documentadas da Maloca.
A história da Maloca nos leva de volta ao Encontro Nacional dos Estudantes Indígenas (ENEI) de 2015, sediado na UFSC. Na época, o antigo prédio do Restaurante Universitário (RU), desativado desde 2011, serviu de alojamento para os estudantes que viajaram a Florianópolis para participar do evento. Passada uma semana, os visitantes deixaram o alojamento improvisado.
Para 22 alunos indígenas da própria UFSC, porém, aquele prédio abandonado viraria “moradia”. Ocupar o espaço foi a maneira encontrada para deixar de sofrer com os preços de aluguel na capital de Santa Catarina e com o déficit habitacional de moradia oferecida pela universidade.
Nascia ali a Maloca, num prédio sem nenhuma estrutura para quartos, alimentação ou estudos. Na época, os estudantes ainda precisavam dividir os banheiros da área externa do local com servidores da universidade (não há banheiro dentro da ocupação).
Àquela altura, a Reitoria da UFSC, então sob comando de Roselane Neckel, rejeitou a ideia da ocupação indígena. A ameaça de despejo veio meses depois, em maio de 2016, mas não chegou a se cumprir e uma nova gestão assumiu a Administração Central.
“O professor Cancellier assumiu alguns compromissos. Entre eles, manter os estudantes no alojamento que lá estavam. E se comprometeu também a melhorar as condições daquele espaço. Nós fizemos um jantar, uma cerimônia, numa sexta-feira, lá na Maloca, para que nós conhecêssemos a situação”, relembrou Pedro Barreto (que ocupa o cargo de Pró-Reitor de Assuntos Estudantis desde a gestão de Luis Carlos Cancellier de Olivo), durante audiência pública que discutiu o tema da moradia indígena no Centro Socioeconômico (CSE), em novembro de 2021.
Sob a gestão de Cancellier, o choque que quase culminou em morte provavelmente não aconteceria. Não com ela.
Segundo os estudantes da Maloca, havia naquela época um acordo verbal para que filhos e filhas de alunos da UFSC não morassem no alojamento, devido às más condições do prédio. Embora pouco documentada, a relação entre alunos e universidade durante a gestão de Cancellier é tida pelos atuais moradores da Maloca como relativamente boa. Foram feitas pequenas melhorias estruturais e a promessa de construção de um lugar adequado ainda não era antiga o suficiente para gerar grandes incômodos nos indígenas.
A situação mudaria com a morte do reitor, em meados de 2017, meses depois de a Maloca sofrer um alagamento. O turbulento período que sucedeu a morte de Cancellier foi de pouco avanço nas demandas dos indígenas. “Acabou que ele faleceu e eles não cumpriram o acordo”, lembra Laura. Mesmo com receios, mães e pais passaram, a partir dali, a abrigar filhos e filhas na Maloca (há uma linha do tempo com a cronologia dos acontecimentos no fim da reportagem).
O período que se seguiu coincidiu com um intenso corte de benefícios aos quais eles tinham acesso. A maior parte dos alunos indígenas da UFSC vêm a Florianópolis diretamente de suas aldeias, muitos deles em condições socioeconômicas delicadas. A presença de crianças na Maloca também é explicada por uma série de fatores culturais que envolve a criação dos indígenas dos mais de dez povos diferentes que já passaram por ali.
Em matéria veiculada no site da universidade em dezembro de 2017, a SAAD (Secretaria de Ações Afirmativas e Diversidades) destacou a importância de se construir uma moradia e um centro cultural indígenas para promover a diversidade na UFSC. A SAAD ainda ressaltou que este foi um “compromisso assumido pelo saudoso reitor Luiz Cancellier de Olivo”. Sucessor de Cancellier, Ubaldo Cesar Balthazar já era reitor na época da publicação da matéria.
O primeiro documento que detalha as condições da Maloca oficialmente data de 8 de agosto de 2018, pouco menos de um ano após a posse de Ubaldo como reitor. Preocupados com o aumento no número de estudantes com a chegada do semestre 2018.2, moradores da Maloca requisitaram à PRAE (Pró-Reitoria de Assuntos Estudantis), em caráter de urgência, o fornecimento de dez camas e colchões. O documento destaca, inclusive, a iminente chegada de uma criança de apenas seis meses de idade. A administração da universidade, segundo relatos dos estudantes, não atendeu à demanda.
“Essas camas a gente ganhou do Exército. As camas são todas doações que a gente pega, em tudo quanto é lugar”, relata um morador da Maloca.
E isso não acontece só com as camas. A maior parte da mobília da Maloca foi conseguida pelos próprios estudantes, através de grupos de classificados do Facebook, doações de lideranças indígenas e, mais raramente, de professores da universidade e instituições como o Exército. Da UFSC, receberam, em seis anos, um fogão antigo, duas máquinas de lavar (que vivem indo e voltando do conserto), microondas e geladeira. Os dois computadores que atendem os estudantes também foram fornecidos pela universidade.
As condições dos computadores, que estão na Maloca há pelo menos três anos, são mais um retrato do descaso da Reitoria com a comunidade indígena. “Aquilo ali não condiz com a realidade da UFSC, sabe? Cada curso tem programas específicos para trabalhar. Eu já fiz três disciplinas de Estatística e a Júlia também vai fazer agora neste semestre. E a gente usa um programa para rodar bases de dados. Tu acha que um computador desse aí vai rodar o programa? Não vai de jeito nenhum!”, reclama Laura. Atualmente, apenas um dos computadores funciona. A internet fornecida para os moradores é a mesma que alimenta o restante da universidade e o alojamento conta com diversas áreas onde não há sinal de Wi-Fi.
O atual espaço de estudos da Maloca fica na sala principal, separado apenas por uma divisória de plástico. O cômodo que servia como sala de estudos da “moradia” até o primeiro semestre de 2019 teve que ser desocupado para virar mais um quarto. Por diversos fatores, incluindo as próprias condições do local, a entrada de estudantes indígenas costuma ser maior que a saída a cada semestre. A superlotação do local consta em pelo menos duas denúncias feitas pelo movimento indígena à Reitoria – uma em janeiro, outra em março de 2019. Ambos documentos tiveram seu recebimento confirmado através de assinaturas de pessoas ligadas à Reitoria, sendo que o documento enviado em janeiro foi recebido pessoalmente pelo reitor Ubaldo Cesar Balthazar.
Entre janeiro e agosto de 2019, os estudantes requisitaram à Administração da UFSC melhorias no escoamento de chuva, dedetização do espaço contra ratos e mosquitos, instalação de uma pia na cozinha improvisada da Maloca, troca de computadores, duas novas remessas de camas e colchões, reparos no banheiro feminino e na rede elétrica, dentre outras coisas.
No geral, a Administração da universidade não atendeu aos pedidos dos estudantes realizados nestes requerimentos – ou, quando o fez, resolveu o problema apenas parcialmente.
A própria condição da Maloca nos dias de hoje confirma isto. A cozinha da ocupação (que, assim como a sala de estudos, também mudou de lugar para que um novo quarto fosse criado) segue sem nenhuma pia. O acesso à água se dá através de um tanque na área externa, usado tanto para lavar roupas, quanto para dar suporte à cozinha. A “moradia” chegou a ficar três anos sem acesso a bebedouro ou purificador de água e a comunidade indígena segue tendo problemas graves com a eletricidade e infiltrações. Exemplo disso foi um princípio de incêndio ocorrido em 2019.
“Começou a sair faísca para tudo que é lado. Apagaram-se as luzes, a gente foi tudo pra rua e esperou os bombeiros chegarem. Eles vieram, olharam, mas também não tinham muito o que fazer. Eles só mandaram a gente se cuidar, isolaram a área onde teve o princípio de incêndio. E dali pra cá, continua a mesma coisa, a gente continua aí”, lembra Cristhian.
De acordo com ele, parte da fiação foi trocada após o episódio, mas a rede elétrica segue apresentando problemas.
Além disso, camas e colchões são um problema a cada novo semestre e a configuração dos quartos vive mudando. Há espaços que atendem a etnias específicas (como o dormitório dos Guarani, no fim do corredor principal), quartos menores que atendem grupos familiares, quartos divididos por amigos e dormitórios maiores que abrigam um pouco de tudo. A divisória entre um quarto e outro varia em tamanho e material, uma vez que a maior parte dos espaços foram se formando conforme iam chegando mais estudantes na “moradia”. A falta de privacidade é reclamação de todos na Maloca, cuja entrada é restrita a moradores.
“No passado eu já fiz algumas inspeções com o Pró-Reitor Pedro [Barreto, da PRAE], e algumas situações foram resolvidas. Mas são sempre soluções de curtíssimo prazo porque, na verdade, eles precisam de um prédio novo, adequado. A ocupação deles é uma ocupação integral, não é só para dormir. É integral, eles usam o mesmo espaço para estudar. O equipamento deles é totalmente inadequado, eles não têm acesso à Biblioteca tarde da noite ou nos fins de semana, e eles precisariam disso”, afirma a procuradora da República Analúcia Hartmann.
A procuradora acompanha a situação enfrentada pelos estudantes indígenas na UFSC desde a ocupação da Maloca e mantém diálogo constante com a Reitoria.
Se 2019 foi marcado por negligência, no fim daquele ano surgiu uma grande esperança: a promessa concreta de que um novo espaço seria, de fato, construído. Em 3 de dezembro daquele ano, foi realizada uma licitação para a reforma de um espaço próximo à Maloca que serviria de alojamento para 60 estudantes indígenas (número este que daria conta dos moradores da Maloca na época, mas que seria insuficiente para todos os indígenas da universidade – mais de uma centena).
As obras tinham previsão de conclusão em 180 dias corridos e seriam financiadas através de uma emenda parlamentar à qual a UFSC teve acesso. Foram empenhados R$ 940 mil para a contratação da Maxi Empreendimentos, empreiteira que ficou responsável por executar o projeto. Entretanto, quase dois anos e meio depois da licitação, não há sequer sinal de obras no espaço.
Durante o período, a Reitoria pediu prorrogação do contrato com a Maxi duas vezes. O primeiro pedido aconteceu em novembro de 2020, um mês antes do fim do contrato inicialmente firmado. O segundo veio um ano depois e traz uma justificativa: a Maxi Empreendimentos ainda aguardava, àquela altura, a liberação do espaço para a execução do contrato. Isto porque o prédio licitado pela Reitoria não estava desocupado – abrigava o Laboratório de Biologia Molecular e Biotecnologia de Leveduras (o Departamento de Biologia da UFSC também enfrentou uma série de problemas estruturais recentemente).
De acordo com os moradores da Maloca, durante os dois últimos anos, foram várias as vezes em que a Reitoria prometeu que a obra teria início em datas que foram se prorrogando indefinidamente. Os compromissos assumidos pela administração da universidade com o movimento indígena, via de regra, são feitos de maneira verbal. Todos os documentos que detalham as condições da Maloca foram emitidos pelos próprios estudantes e a documentação que permite acompanhar o (não) andamento da reforma do novo espaço consta em diferentes seções de prestação de contas no site da UFSC.
A promessa mais recente foi de que a reforma se iniciaria em abril de 2022. Desta vez, entretanto, a gestão da universidade também havia se comprometido com o Ministério Público Federal.
“Atualmente, não é mais razoável [o atraso nas obras]. Houve um atraso decorrente de outros atrasos, a Reitoria tem um problema seríssimo de desocupação de alguns prédios e realocação de salas de aula. Mas isso não é motivo para atrasos, não dá mais”, afirma a procuradora Analúcia Hartmann.
Segundo ela, passado o mês de maio de 2022, sem sinais de obra, o MPF estuda entrar com uma ação judicial obrigando a UFSC a, enfim, reformar o espaço. A procuradora ainda discorda da justificativa dada pela administração da universidade para o atraso nas obras, que é baseada na paralisação das atividades da UFSC durante a pandemia do coronavírus. “Teve o primeiro ano de pandemia, mas no segundo ano as licitações aconteceram, a contratação aconteceu”, afirma.
A pandemia, inclusive, foi mais um fator que evidenciou a urgência da reforma. O período de suspensão de atividades presenciais na UFSC foi duríssimo para os estudantes indígenas.
Embora tenha se tornado um problema ainda no começo de 2020, o coronavírus não foi o primeiro baque para os moradores da Maloca naquele ano. No dia 12 de março, durante um happy hour no laguinho da UFSC, que fica a poucos metros da ocupação, os estudantes indígenas sofreram ameaças após se recusarem a deixar dois homens carregarem uma caixa de som no espaço da Maloca.
“Nós não deixamos, ele ameaçou, falou que ia voltar e tacar fogo na Maloca porque a gente era um bando de índio”, relembra uma moradora.
Foi pelo menos a terceira vez em que os indígenas sofreram intimidações durante eventos na universidade. Em uma delas, um aluno ficou ferido após a Maloca ser apedrejada. Também já ocorreram uma série de furtos no local, e os estudantes ainda reclamam do excesso de barulho durante as festas, da sujeira no local e da falta de conscientização dos alunos não-indígenas, que usam o muro externo da Maloca como banheiro.
A menor circulação de pessoas durante a fase crítica da pandemia diminuiu temporariamente problemas desta natureza, mas trouxe vários outros. Das 63 pessoas que viviam na Maloca, cerca de 20 não retornaram às suas aldeias.
Àquela altura, a Maloca estava sem fogão desde o início do ano, o que aumentou a dependência dos indígenas em relação às refeições do Restaurante Universitário. Um dia antes do fechamento do RU, em 16 de março de 2020, os alunos enviaram um ofício à Reitoria definindo a situação como de “extrema vulnerabilidade”. A administração da universidade encaminhou parte do estoque do RU aos indígenas, conforme divulgado dias depois (em uma das poucas referências à Maloca no site da UFSC – definida como “moradia provisória dos estudantes indígenas”).
Os moradores do alojamento conseguiriam um fogão através de uma liderança indígena. Além da doação inicial de alimentos, a UFSC também incluiu os moradores da Maloca em seu programa de auxílio emergencial, que repassava R$ 200 por mês a estudantes em situação de vulnerabilidade.
Ainda assim, a insegurança alimentar foi uma preocupação durante toda a pandemia. Em abril de 2020, os estudantes fizeram uma campanha de arrecadação para complementar suas necessidades. Em junho, fizeram uma nova campanha, divulgada pelo Cotidiano UFSC, também ressaltando a carência de roupas de frio, cobertores e produtos de limpeza e higiene.
A implementação do ensino remoto, em agosto de 2020, foi mais uma pedra no caminho dos que precisaram ficar no local. Sem acesso à Biblioteca Universitária, coube aos moradores da Maloca confiar na própria estrutura da ocupação para estudar. Não foram doados novos equipamentos à “moradia” e o Programa Emergencial de Inclusão Digital da UFSC não contemplou seus moradores. A alegação da Reitoria foi de que os alunos já tinham acesso à Eduroam – a internet da universidade, que não cobre toda a área da Maloca.
O programa de inclusão digital, que foi estabelecido para dar suporte a estudantes em situação de vulnerabilidade, fornecendo equipamentos e pacotes de internet durante a vigência do ensino remoto, também não atendeu às necessidades dos estudantes indígenas que passaram a pandemia longe da Maloca. Além de relatarem uma série de problemas com os computadores enviados pela UFSC às aldeias, a contratação dos pacotes de internet, que era de responsabilidade dos alunos, foi tida como excessivamente burocrática pelos indígenas. “A maioria dos indígenas não conseguiu. O branco conseguiu, mas o indígena não. A maioria deles tá com o nome no SPC. E sem falar que é difícil pra contratar isso na aldeia”, pontua Laura.
Não foi a primeira ocasião em que os estudantes indígenas sofreram com a burocracia para ter acesso a benefícios.
“As regras para os estudantes indígenas conseguirem os auxílios deles são muito piores que outras regras. Isso é um círculo muito vicioso, porque eles têm que manter certo nível de aprovação nas disciplinas e nos cursos, o que eles não podem atingir porque estão mal alojados, mal alimentados e sem equipamento. É totalmente irreal e injusta esta situação”, afirma a procuradora Analúcia Hartmann.
Segundo ela, tanto as condições da Maloca, quanto a dificuldade no acesso a outros benefícios têm influência direta na alta taxa de evasão dos estudantes indígenas na universidade.
2022 começou com casos de covid-19 na Maloca. O surto foi superado sem maiores complicações de saúde e os estudantes indígenas voltaram suas atenções ao retorno presencial das aulas. Os quatro semestres sem atividades na UFSC formaram uma geração inteira de estudantes que chegariam juntos à universidade pela primeira vez em abril. “Na verdade, a maioria de nós era para estar no Acampamento Terra Livre (ATL), em Brasília. Mas, por este motivo dos calouros, a gente optou por ficar, para não deixar eles perdidos, sozinhos”, afirma Cristhian. O ATL aconteceu em abril, durante as férias da universidade.
Se a cozinha já havia trocado de lugar durante a pandemia, dessa vez foi um antigo depósito dos servidores da UFSC que teve que ser ocupado. Não havia mais espaço nos quartos existentes na Maloca para abrigar todo mundo. O novo quarto da Maloca é o de estrutura mais precária atualmente. Estrados e armários são improvisados e os espaços de cada estudante são divididos por lençóis. Pelas paredes, desce água quando chove e, no corredor externo, há uma infiltração logo acima do quadro de energia do alojamento. Até o começo do semestre, não havia energia elétrica dentro do dormitório.
A ocupação do cômodo também trouxe de volta um problema antigo da Maloca. “A gente tirou tudo, tava cheio de rato”, lembra Cristhian. O antigo depósito ainda tinha focos de baratas e mosquitos. O período de retorno às aulas coincidiu com a situação de emergência pela qual passava Florianópolis por conta da dengue. Superlotada, a Maloca sofreu com um surto da doença entre o final de abril e o começo de maio de 2022. A situação foi, mais uma vez, informada à Reitoria.
Em documento enviado à PRAE em 30 de abril, os estudantes relatam a confirmação de três casos de dengue na ocupação, além de sete outros casos suspeitos. Os indígenas pontuam que sempre houve focos de mosquito na Maloca, denunciam que a caixa d’água do local se encontra aberta há quatro anos e que há acúmulo de água da chuva na laje do prédio. No documento, eles solicitam a resolução destes problemas, a dedetização da Maloca e o fornecimento de repelentes. Além disso, pedem pela instalação de um bebedouro para que os estudantes doentes pudessem seguir a cartilha fornecida pelo Hospital Universitário, que os aconselhava a beber de dois a três litros de água por dia.
A resposta da PRAE ao requerimento veio mais de uma semana depois, em 10 de maio. Em um email enviado a um morador da Maloca, a PRAE solicitou que os estudantes medissem a área das janelas para que a UFSC fizesse a encomenda de telas mosquiteiras – mesmo que lavanderia e boa parte da área de convivência sejam ao ar livre, bem como o acesso a cozinha e banheiros. Até a instalação das telas, a solução da Pró-Reitoria foi encaminhar aos estudantes instruções de como cobrir os ralos da “moradia”. O bebedouro solicitado foi conseguido pelos próprios indígenas após o surto de dengue, através de mais uma campanha de arrecadação.
A dedetização ocorreu um mês após o surto de dengue, em 3 de junho. Neste mesmo dia, os estudantes passaram parte do dia fora da Maloca para cumprir as quatro horas de segurança indicadas para não se contaminarem. Mesmo assim, uma série de moradores relatou sintomas como sonolência, dor de cabeça e irritação nos olhos ao retornar. Por conta da pouca ventilação do local, o cheiro de veneno ainda era perceptível no sábado pela manhã.
Atualmente, 57 indígenas de oito povos diferentes vivem na Maloca, incluindo cinco crianças.
Em contato com a reportagem do Cotidiano UFSC, em 2 de junho de 2022, a Reitoria confirmou que, durante todo o período de ocupação da Maloca, as ações tomadas pela Administração da UFSC são paliativas e que a “garantia de salubridade” para os estudantes indígenas só viria com a reforma de um novo espaço – reforma esta que não teria sido realizada até hoje por atrasos decorrentes da pandemia. Atualmente, segundo a Administração Central da universidade, há um equipamento no espaço cuja retirada envolve a descontaminação do ambiente. Não foi apresentada nenhuma justificativa para a não remoção deste equipamento até o momento.
Sobre o acesso precário à água dentro da Maloca, a Reitoria limitou-se a dizer que “o fornecimento de água é associado à estrutura de toda a instituição. Episódios de incidentes, como vazamentos ou suspensões pela Casan, afetam toda a universidade e são resolvidos como urgência, sempre que acionadas as unidades responsáveis”. O acesso à água potável, que só foi sanado no primeiro semestre de 2022 pelos próprios estudantes, fazia parte do questionamento enviado pela reportagem, mas não foi comentado.
Também não foi apresentada justificativa para a falta de estrutura para os estudos dos indígenas. A Reitoria afirma que “todos os estudantes têm a mesma condição de acesso” a equipamentos de informática, visto que os Centros de Ensino e a Biblioteca Universitária são de acesso geral. A administração da UFSC ainda ressaltou que ofereceu auxílios e insumos aos estudantes indígenas durante o período da pandemia.
Em relação à segurança dos moradores da Maloca, a Reitoria confirmou que o choque que quase culminou na morte de uma criança dentro da moradia “realmente despertou a necessidade de reparos em algumas instalações, mas, novamente paliativas”.
A Reitoria ainda afirma que as intimidações e agressões ocorridas durante happy hours são “fruto de comportamentos e atitudes indevidas de estudantes” que realizam estes eventos, mesmo que a Maloca não tenha relação direta com nenhum destes.
Os estudantes indígenas que ocupam a Maloca não recebem o auxílio moradia de R$ 300 concedido a estudantes em situação de vulnerabilidade socioeconômica. Segundo a Reitoria, isto ocorre porque a própria estadia na Maloca já seria o benefício, parte de uma “política de apoio à permanência”. De acordo com a Administração Central da universidade, a ocupação se junta ao PAIQ (Programa de Assistência Estudantil para Estudantes Indígenas e Quilombolas, que destina R$ 900 a parte dos estudantes) e ao apoio da PRAE e da SAAD como as únicas estruturas que hoje auxiliam na permanência dos estudantes indígenas em Florianópolis.
Para que estes auxílios se ampliassem, de acordo com a Reitoria, seria necessário mais investimento do Governo Federal. Na atualidade, a UFSC passa por um momento crítico e teve R$ 25 milhões de seu orçamento bloqueados há pouco mais de um mês.
Para a procuradora do MPF Analúcia Hartmann, apesar dos constantes cortes orçamentários, há situações na instituição que atingiram o limite. “Independente disso, eu acho que tem uma questão de gestão e uma questão de prioridades. Claro que a definição de prioridades está dentro da autonomia da própria universidade, mas tem situações que são limite. E eu acho que essa é uma situação limite”.
Em 2022, uma nova gestão deve assumir a Reitoria da UFSC. O professor Irineu Manoel de Souza, que venceu a consulta pública pela sucessão em maio deste ano, deve assumir o posto de reitor em julho. Ainda como candidato, ele esteve na Maloca em abril deste ano e se comprometeu a retornar ao alojamento, caso eleito, para debater com os moradores questões relacionadas à permanência dos estudantes indígenas. Não foram feitas, no entanto, promessas concretas em relação à Maloca ou à reforma de um novo espaço.