O novo marco legal do saneamento e a construção do futuro no Brasil

Segundo informações do SNIS (Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento), 34 milhões de brasileiros não possuem acesso à água potável e 100 milhões não têm seu esgoto tratado e coletado, dados que o novo marco regulatório têm a intenção de mudar

Reportagem de Fernanda Biasoli

Água, substantivo feminino. Substância poderosa que abre os caminhos para a vida se desenvolver neste planeta. Faz parte da história do surgimento e evolução dos seres vivos que se conhece hoje. Muito além da biologia, possui significado cultural, simbólico e socioeconômico em diversas partes do globo. Mas que futuro a humanidade está construindo para a água e para o planeta? Tal discussão possui relação com o setor de saneamento básico, tópico que ganhou grande visibilidade nos últimos dias no Brasil. A lei 14.026/20, sancionada no dia 15 de julho pelo presidente Jair Bolsonaro, traça novos rumos para esse serviço no país e divide opiniões. 

SANEAMENTO, SAÚDE PÚBLICA, EDUCAÇÃO E MEIO AMBIENTE

Antes de compreender quais mudanças estão ligadas ao novo marco regulatório, é importante entender o que é, efetivamente, saneamento básico. Diversas vezes confundido com somente um serviço de tratamento de esgoto, o saneamento possui na verdade quatro eixos de atuação: distribuição de água potável, coleta e tratamento de esgoto, drenagem urbana e coleta de resíduos sólidos. Esses quatro pilares, quando trabalhados de maneira conjunta e efetiva, elevam a qualidade de vida das populações e reduzem os impactos causados pelo ser humano ao meio ambiente. 

Segundo informações do Instituto Trata Brasil, as principais áreas afetadas pela carência desse serviço são o meio ambiente, a saúde, a educação, o trabalho, a cidadania e o turismo.  Assim, o seu acesso integral permite um melhor desfrute de outros direitos básicos. É por essa razão que sua universalização é um tópico discutido em escala mundial. Para ilustrar como acontece essa relação, o Cotidiano separou alguns dados publicados pelo Instituto Trata Brasil:

Muito além do tratamento de esgoto, o saneamento básico, então, faz parte da construção de um futuro que abraça as questões socioambientais. É por essa razão que o debate acerca do novo marco regulatório no Brasil ganhou grandes dimensões. A nova lei definiu diretrizes que possuem um impacto direto no amanhã.

O interesse em alterar o marco regulatório não é novidade e muito menos exclusividade do governo Bolsonaro. Em 2018, ainda sob o governo de Michel Temer, houve duas tentativas, na forma de Medidas Provisórias, para alterar a então vigente lei 11.445, que regulava os serviços de saneamento básico no Brasil desde 2007. As duas MPs (844/18 e 868/18) não chegaram a ser votadas pelo Congresso. Entidades da sociedade civil, como sindicatos e movimentos sociais, realizaram uma dura pressão e conseguiram impedir que a Medida Provisória fosse adiante. Mas então o que mudou em 2020 para a rápida aprovação da nova lei?

Francisca Adalgisa, socióloga e representante do Fórum Popular da Natureza, defende que o novo marco legal do saneamento “foi adiante e conseguiu ser aprovado por ter sido colocado para votação em meio a uma pandemia, sem possibilidade de mobilização social”. Para a socióloga, um dos principais objetivos da nova lei é facilitar a privatização do setor por meio de uma das maiores mudanças que o novo marco traz: os contratos. Entenda:

Segundo Francisca, tal mudança proíbe diretamente a prestação de serviços por empresas públicas, considerando que estas não estariam em “pé de igualdade” com empresas privadas. A lei 14.026/20 prevê uma maior destinação de recursos federais para estados e municípios que optarem pela privatização.

Já para Fabrício Vieira, engenheiro sanitarista e sócio proprietário da Life Ambiental Engenharia e Consultoria, outros fatores foram responsáveis pela aprovação. Entre eles estão a ampliação da concorrência, a melhoria nos valores de tarifas praticados e a crise econômica gerada pela pandemia do novo coronavírus. Segundo o engenheiro, o setor público não possui condições de investir fortemente nessa área, necessitando, para isso, de auxílio privado. Fabrício acredita que “o setor de saneamento trará um aporte de cerca de R$ 700 bilhões de investimentos para o alcance das metas, resultando na geração de empregos e tributos oriundos do setor”.

A lei é de autoria do senador Tasso Jereissati (PSDB-CE). Ele faz parte do Grupo Jereissati, que comanda a Calila Produções, única acionista brasileira da Solar, uma das maiores fabricantes de Coca-Cola no mundo. Para Francisca, o interesse do senador no novo marco legal é “indisfarçável”, levando em consideração o grande valor da água (maior a cada dia). A substância já é motivo de disputas em diversos lugares do mundo e especialistas apontam que ela pode se tornar a principal commodity deste século.

A universalização do serviço no país ainda se configura como um grande objetivo a ser alcançado nos próximos anos. Segundo informações do SNIS (Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento), 34 milhões de brasileiros não possuem acesso à água potável e 100 milhões não têm seu esgoto tratado e coletado, dados que o novo marco regulatório têm a intenção de mudar. O acesso de 99% da população à água potável e a coleta e tratamento de esgoto para 90% da população até 2033 são as principais metas traçadas pela nova lei.

Fabrício acredita que tal objetivo necessita de investimento em novas tecnologias para a área, ‘’com foco na redução de custos de implantação e operação’’. 

Já Francisca defende que a universalização ‘’não se dará por meio do mercado financeiro, mas sim pela somatória de esforços e pela construção coletiva, com planejamento e políticas públicas’’. 

Além das mudanças nos contratos e nas metas, o marco regulatório alterou questões relacionadas à fiscalização e à regulação, à prestação de serviços para pequenos municípios e aos prazos para o fechamento dos lixões. Confira abaixo as principais mudanças trazidas pela lei:

O SANEAMENTO AO REDOR DO MUNDO

Um relatório divulgado em junho de 2019 pela Organização Mundial da Saúde em parceria com a UNICEF, revelou que uma em cada três pessoas no mundo não possui acesso a água potável, um dos quatro eixos do saneamento básico. Essa informação ilustra que mesmo a universalização do serviço sendo um objetivo global, ainda está longe de ser alcançada. Estudos demonstram que países como França, Estados Unidos e Espanha concederam seus serviços à iniciativa privada visando essa expansão do saneamento. No entanto, esses mesmos países voltaram a estatizar os serviços nos últimos anos. Este retorno, segundo o relatório, teria ocorrido porque a concessão não atingiu os objetivos necessários ao final dos seus contratos. 

Um estudo divulgado pelo Transnational Institute (TNI), aponta que 884 serviços (como saneamento, energia e transporte) distribuídos entre 55 países, foram reestatizados entre os anos de 2000 e 2017. Em relação especificamente a serviços de saneamento, houve 152 reestatizações na França, 67 nos Estados Unidos e 56 na Espanha. Segundo o instituto, isso aconteceu porque as empresas responsáveis acabaram por priorizar os lucros, resultando em serviços caros e ruins. A maioria dos casos de reestatização ocorreu com a não renovação de contratos de concessão. Em outros, houve rompimento antecipado de contrato e “recompras” de serviços.

Os dados do estudo foram publicados no relatório “Reconquistando os serviços púbicos”. O TNI também possui um mapa interativo onde é possível observar as reestatizações relacionadas à água que ocorrem no mundo. Na América Latina, também há um exemplo de reestatização dos serviços públicos de saneamento. Em Buenos Aires, Argentina, os serviços foram concedidos à empresa francesa Suez, em 1993. A empresa atuou durante 30 anos e tornou-se o caso de maior concessão privada do mundo. Mas em 2006, o governo cancelou a concessão. Uma animação feita em 2013 pela Municipal Services Project, Corporate Europe Observatory e o Transnational Institute, ilustra os casos de Buenos Aires e Paris, debatendo a questão dos benefícios e desafios dos serviços públicos. 

No Brasil, o sistema de saneamento de Manaus já está nas mãos do setor privado há duas décadas. Na capital do Amazonas, cerca de 27% da população não possui acesso à água tratada e somente 12,5% do esgoto da cidade é coletado (o restante é despejado no rio Negro, córregos e igarapés). Em ranking elaborado pelo Instituto Trata Brasil no ano de 2018, Manaus se encontrava como o 5° pior saneamento do país. 

Fabrício defende que independente do prestador de serviço (público ou privado), é importante se atentar a duas questões: a qualidade da elaboração do Plano Municipal de Saneamento Básico (PMSB) e o cumprimento do cronograma estabelecido pelo plano. “Estas duas questões são chave para se entender sobre a prestação adequada dos serviços. Isto porque dispomos de leis e dispositivos de controle, mas se eles não estão sendo cumpridos é preciso realizar o questionamento para quem regula o sistema”, afirma o engenheiro. 

RECEITA PRONTA?

Saneamento é um serviço complexo. É preciso estudar e compreender as particularidades de cada região e elaborar estratégias específicas para cada uma delas. Fabrício enumera três pontos que acredita serem necessários para que o país avance em direção à universalização. O primeiro é o interesse comum do Governo Federal junto aos municípios e cidadãos de fazer com que o serviço seja entregue. O segundo ponto é compreender as regionalidades. O terceiro é “operar os sistemas de forma adequada ao longo do horizonte dos projetos, considerando que a universalização não se refere somente à implantação dos sistemas, mas também em mantê-los em níveis de qualidade que garantam a saúde sanitária dos cidadãos e saúde ambiental dos ecossistemas”, afirma.

A elaboração de uma política pública que integre diferentes áreas como saúde, habitação e saneamento é um caminho para a universalização, segundo Francisca. A socióloga também aponta que é importante a criação de um fundo específico para o setor, como o Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica), junto a indicadores de investimento e qualidade, com fiscalização e monitoramento. A criação de um programa de recuperação de empresas estaduais e municipais, a elaboração de uma agência reguladora que respeite as regionalidades e autonomia dos municípios e, ainda, a integração das políticas de saneamento à agricultura familiar e ao PNSR (Programa Nacional de Saneamento Rural) são outros pontos citados pela socióloga.