Roupas Digitais: mera futilidade ou uma possibilidade para o futuro?
Nova tendência entre os jovens é vista por profissionais da moda como uma opção sustentável para o mercado
Reportagem por Ana Luísa Antonioli e Júlia Magalhães
Em março de 2021, as redes sociais impressionaram com um lançamento atípico: a Gucci, grife de origem italiana, disponibilizou o tênis “Virtual 25” que, como o próprio nome sugere, é virtual, só existe no mundo online. Com 12 dólares, ou aproximadamente 61 reais na cotação atual, o usuário poderia comprar o calçado e usá-lo como filtro para postar no seu Instagram ou Snapchat, sem nunca chegar a tocar o produto fisicamente. No período, as buscas no Google pelo termo “digital clothes” (roupas digitais, em inglês) saltaram de 25 para 75 pontos, de acordo com a ferramenta Trends da plataforma.
O episódio foi um marco na polêmica das roupas digitais, mas não foi o primeiro. Dois anos antes, a The Fabricant, startup holandesa de moda virtual, leiloou a peça digital mais cara de que se tem registro. O Iridescence, vestido que foi arrematado por um empresário do ramo da tecnologia por 9.500 dólares, ou aproximadamente 48.600 reais atualmente.
Diferentemente do Virtual 25, o vestido não é um filtro. A outra opção de compra das roupas digitais, e a mais utilizada pelas empresas que comercializam esses produtos, é a de encaixar a peça em uma foto já existente do comprador. Em lojas como a Dress X – empresa especializada em roupas digitais – o cliente compra o produto, envia a foto na qual quer aparecer com a peça e, depois de até três dias, recebe a imagem de volta, dessa vez com a roupa digital em seu corpo.
Trocando as linhas e tecidos por pixels e utilizando tecnologias de realidade aumentada, a ideia das roupas digitais remete a um outro mundo da internet: os videogames. As skins, populares em jogos como Fortnite e Counter Strike, são roupas virtuais para serem usadas nos avatares dos jogos.
Partindo do universo dos games, muitas grifes decidiram embarcar nesta tendência virtual e produzir peças e até mesmo coleções em colaboração com desenvolvedores. Uma das pioneiras dessa parceria entre o mundo dos jogos e da moda foi a Louis Vuitton. Junto da Riot Games, a grife francesa criou skins para a Final do Campeonato Mundial de League of Legends em 2019 e também uma coleção física inspirada no game mais jogado do mundo em 2020, de acordo com o Instituto de Pesquisa NewZoo. A coleção foi idealizada por Nicolas Ghesquière, diretor artístico das coleções femininas da Louis Vuitton e apresentou valores bem diferentes. Para as skins – coleção digital – os preços iniciavam em 1350 RP (moeda do jogo que equivale a aproximadamente 32 reais), já os valores das peças físicas iniciavam a partir de 170 dólares, aproximadamente 870 reais na cotação atual.
Apesar de parecer um assunto recente, as roupas digitais são velhas amigas de muitas pessoas, principalmente daquelas com maior contato com jogos. Estes usuários já tinham a possibilidade de comprar produtos que só existem virtualmente como parte de suas rotinas, antes mesmo do lançamento do tênis digital da Gucci. Segundo a indústria de análises DFC Intelligence, jogos são parte da vida de 3,1 bilhões de pessoas, ou de 40% da população mundial, o que torna as skins e, consequentemente, as roupas digitais, um assunto muito presente na vida de centenas de pessoas, ainda que indiretamente.
Hugo Poubel, estudante de 19 anos, é um dentre esses amantes dos videogames. O jovem, jogador de League Of Legends desde 2019, já perdeu a conta exata, mas estima ter gastado mais de 800 reais em skins. Para ele, a graça está em colecionar. “É ótimo ir jogar com os amigos e ficar competindo quem tem a mais bonita ou a mais rara, faz parte da experiência desse tipo de jogo”, explica.
Outro marco na criação de skins para jogos ocorreu em 23 de abril de 2020, no início da pandemia. O cantor Travis Scott fez um show ao vivo dentro do jogo Fortnite, quebrando recordes de público. O show Astronomical, segundo a desenvolvedora de jogos Epic Games, foi assistido por mais de 12 milhões de jogadores e, para realizar o evento, o rapper utilizou suas próprias skins, que posteriormente puderam ser adquiridas pelo público.
Ganhando cada vez mais espaço no cenário fashion, as skins chegaram a integrar o maior evento de moda do Brasil: o São Paulo Fashion Week (SPFW) de 2021. Neste ano, dos 48 desfiles, 23 foram online. No que foi a 52ª edição do evento, 20 skins marcaram presença no desfile do jogo Free Fire.
Para a professora de Jornalismo e Moda da PUC-RS, Paula Puhl, as skins se popularizaram ainda mais com essa aproximação da moda. Para ela, “a questão do avatar, de ter sua skin, de tu colocar tua personalidade, tua identidade é algo que já vinha vindo e agora está tomando mais força”..
O mesmo argumento é utilizado por simpatizantes das roupas digitais. Com as peças feitas em softwares e não em máquinas de costura, a moda editorial ganha vantagem pela abertura de novos níveis de criatividade, envolvendo elementos que se mexem e texturas que não poderiam ser fisicamente alcançadas no mundo real. “A maior diferença que eu vejo é que no digital tu não tem barreiras. Tu pode fazer uma coleção que a roupa pega fogo, não tem problema nenhum”, afirma a estudante de Moda da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), Anna Mência.
A estudante, que está no último semestre da graduação, desfilou sua coleção no OCTA Fashion, evento realizado anualmente pelos docentes e alunos do curso da UDESC. Este, que é um dos maiores desfiles universitários da região, foi realizado virtualmente em dezembro de 2021 devido à pandemia, mostrando a versatilidade que o virtual pode possibilitar.
Anna decidiu não utilizar novos elementos virtuais em sua coleção, mas o lado criativo já é explorado por grandes empresas. A professora Paula, por exemplo, adquiriu um tênis virtual que pega fogo, produzido e vendido pela Dress X, parte de uma coleção digital da loja que só disponibilizou 100 pares do produto. “Eu não posso ter um tênis pegando fogo no real. Então eu acho que para mim isso é o mais legal”, defende.
No mercado consumidor, as roupas digitais representam a chance de possuir uma roupa que não seria utilizável no mundo real, por limitações científicas, falta de dinheiro ou até por falta de ocasião. Em setembro de 2021, quando foi realizado o Met Gala, tradicional baile da revista Vogue, cujo foco são os looks desfilados pelas celebridades no tapete vermelho, a Dress X encorajava o usuário a participar do evento virtualmente. A empresa veiculou a mensagem “Faça seu próprio Met Gala” para incentivar a aquisição de trajes como os usados no baile em anos anteriores.
Para a moda editorial, as roupas virtuais avançam junto com a criação das modelos e influenciadores digitais. A Shudu, primeira super modelo digital do mundo, já contabiliza 219 mil seguidores no Instagram e estampa diversas capas da Vogue. Atualmente, existem empresas especializadas na criação destes modelos e que trabalham em conjunto com os criadores das roupas. Henrique Assis, publicitário e um dos proprietários do Studio Acci, empresa pioneira nas roupas digitais no mercado brasileiro, conta que, para os projetos realizados pelo estúdio, há uma parceria com uma agência de modelos virtuais de Londres. “Foi um processo muito bacana no sentido de produção, porque a gente aplicou as nossas roupas nas modelos deles e quando você cria um avatar, você vai personificar a marca, enfim, trazer algo pro seu público”, conta Henrique sobre a parceria com a marca inglesa.
Em uma mistura entre virtual e digital, as empresas estão se adaptando a essa nova possibilidade de produção de moda, tendência que está ganhando força em território nacional. Para as labels estrangeiras já era comum fazer produtos digitais, projetos com realidade aumentada e produzir peças em 3D, que, muitas vezes, passavam despercebidas pelos consumidores, que as viam apenas como uma foto comum, segundo o dono do Studio Acci.
Pensando no Brasil, Henrique afirma “As marcas aqui se forçaram a olhar para esse tipo de produto, porque com a pandemia você teve que inovar, teve que passar aquela experiência pro seu público, teve que vender. Porque certas coisas não eram possíveis de serem feitas”. Dentre essas ‘coisas’ temos como exemplo os chamados shootings, ou sessões de foto, em português. “Você não ia abrir um estúdio ali com um monte de modelo, fotógrafo, maquiador, cabeleireiro. Então as marcas foram forçadas com a pandemia para entrarem no meio digital”, relata o publicitário.
Seguindo a popularização do digital, a linha que separava o mercado de varejo do editorial tornou-se tênue. Com o fortalecimento das redes sociais e o surgimento dos influenciadores de moda, muitos passaram a acompanhar de perto uma realidade que antes só era vista nas revistas. Desfiles de moda começaram a ser transmitidos quase que ao vivo pelos stories de influencers e as pessoas “comuns” passaram a ter contato com a chamada moda editorial.
Mesmo não fazendo efetivamente parte da vida do brasileiro, já que não é ele que veste aquela peça, o desejo por estar incluído nesta realidade é cada vez maior. Para Paula Puhl, o digital proporciona essa proximidade com um mundo que antes era muito distante de todos. Ela ressalta que essa nova possibilidade de se vestir permite usar um vestido de gala ou até o tênis pegando fogo, por exemplo. “A experiência criativa, as possibilidades de uso e também de ser quase que um figurino, de ser um personagem”, julga a professora como sendo a melhor parte das roupas digitais.
Roupas digitais: moda, economia e meio ambiente
Pelo avanço da tecnologia, da internet e dos influenciadores, o impacto desta tendência das roupas digitais é grande. Com uma maior exposição e virtualização dos negócios, a produção da indústria têxtil cresceu 60%, gerando danos ao ecossistema, segundo um estudo feito por Nawaz Ahmad, Atif Salman e Rubab Ashiq da AIFD Iqra University, no Paquistão.
Atualmente, o setor têxtil é o quarto que mais polui no planeta, de acordo com uma pesquisa feita pelo instituto EcoJungle em 2021. Neste contexto, as roupas digitais surgem como uma alternativa mais sustentável. A ideia é que as peças que existem apenas digitalmente serão expostas nos e-commerces e redes sociais. Uma vez que a pessoa faz a compra, a marca a produz fisicamente e envia ao cliente. “Então acaba gerando menos roupas no mundo, menos lixo no meio ambiente”, afirma a professora Anna.
Com esta nova forma de comercialização, toda a cadeia de produção é alterada. “Existe no processo de desenvolvimento de produto uma fase de construção de pilotos e isso é algo que é muito caro, muito demorado”, relata Wagner Heckert, Head of Marketing da Audaces, empresa brasileira de softwares e maquinários para a indústria da moda. Segundo ele, a grande maioria das peças chamadas de piloto – aquelas que servem para ver comprimento, visual, aplicação da estampa, etc., são desperdiçadas durante o processo, porque elas são somente para testes.
Com o auxílio de novas ferramentas tecnológicas, como é o caso do Audaces 4D, software criado pela empresa, é possível otimizar a produção sem retirá-la do papel, sem um desenho manual; tudo é feito digitalmente. “Você consegue reduzir consumo de matéria prima, reduzir o consumo de tempo, time de operações, tu consegues diminuir a mão de obra necessária para desenvolver o produto”, reafirma Wagner.
Mesmo com a otimização na produção das peças para as empresas, a popularização do consumo de roupas totalmente digitais como varejo pode enfrentar relutâncias de público. “Mas a ideia é que para isso [popularização] a gente vai ter que ter grandes empresas, e no momento não tem grandes empresas por trás. Tem a moda de luxo. A Gucci, a Louis Vuitton, mas são outros propósitos”, afirma a professora Paula. Com o segmento comercial sendo liderado por grifes, o consumo direto de roupas digitais não atinge grande parte da população, que só poderia ter contato com a novidade através de influenciadores que consomem essas marcas.
Sendo considerada uma provável salvação para a indústria têxtil, em meio ao crescimento de críticas ao fast fashion – forma de produção que influencia o alto consumo e o descarte precoce de peças -, as roupas digitais ainda são consumidas exclusivamente por pessoas com alto poder aquisitivo. Por isso, seu papel no futuro levanta dúvidas. “Acredito que sim seja o futuro, mas não que vá tirar o trabalho das modelos reais, sempre o meio a meio ali como outras tecnologias e outros âmbitos que estão surgindo”, opina Henrique Assis sobre a relação com a moda editorial.
A visão do criador do Studio Acci é compartilhada por outros profissionais da área, que acreditam em uma coalizão entre o físico e o digital. Paula Puhl, também enxerga o cenário como algo a ser harmonizado dentro dos variados segmentos do mundo fashion. “Eu acho que a moda digital nunca vai tirar o lugar da física. Mas são, como a gente poderia dizer, aplicações, usos diferentes. Eu acho que tem espaço para todo mundo. Elas podem se complementar, pode ajudar. Uma coisa não vai deixar a outra”, defende.
Considerando as diversas possibilidades ofertadas pelo uso de roupas digitais, a dúvida que resta não é se elas serão o futuro, mas qual será o seu papel.
Reportagem produzida na disciplina Linguagem e Texto Jornalístico III, ministrada pela Profa. Dra. Melina de la Barrera Ayres, no segundo semestre de 2021.