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Imagem: Acervo pessoal / Doutarina
Reportagens

Fenômeno nas redes, arte furry atrai ilustradores e cria mercado de desenhos na internet

Estilo foi abraçado pela comunidade LGBTQIAPN+ como espaço de expressão e representatividade

Reportagem por Matheus Alves

Imagem: Acervo pessoal – Doutarina

Em 2013, quando tinha apenas 16 anos, Luiza, que sempre gostou de desenhar, passou a se interessar por um tipo de ilustração diferente. Focinhos, orelhas felpudas, cauda peluda e um traço artístico infantil e divertido, assim poderia ser descrita a Doutarina – personagem ilustrado por Luíza para representar a si mesma em desenhos dentro da comunidade furry e como ela será identificada durante esta matéria. “De repente descobri: Ah, isso é furry!”, lembra Luíza, que na época nem sabia da relação dos seus desenhos com os furries, mas que acabou se tornando parte importante da sua vida. Foi a partir de grupos em redes sociais que ela conheceu e se interessou pelo Furry Fandom, uma subcultura que reúne entusiastas de personagens antropomórficos – que possuem características humanas e animais, muitas vezes híbridas. Hoje, já com 26 anos e cursando Animação na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Doutarina é apenas um dos muitos trabalhos artísticos realizados por Luiza no meio furry.

Dentro dessa comunidade, que existe predominantemente on-line, ela descobriu uma multiplicidade de expressões artísticas, pessoas, subgrupos e redes sociais para que furries – designação dada aos membros do movimento – possam compartilhar suas criações e interesses com outros. Por meio do X (antigo Twitter), Reddit e Discord, ela conheceu furries de todo país e até mesmo do mundo. “Eu fui aprendendo a desenhar bichos, fui fazendo amizades e criando minhas próprias histórias”, conta. Para Doutarina, o que começou como um passatempo se transformou em uma oportunidade de comercializar suas ilustrações para um público nichado por meio de produtos feitos sob medida para os amantes do Furry Fandom

Outros artistas como Doutarina também perceberam que a demanda por ilustrações que capturem a essência única de cada animal, combinada com a diversidade de estilos artísticos, criou um mercado vibrante e receptivo. Plataformas online, como redes sociais e sites especializados, facilitam a exposição e comercialização dessas criações, permitindo que artistas construam uma clientela fiel. 

O começo de tudo
Cena de ‘Robin Hood’ — Imagem: Reprodução /G1

Existem relatos de entusiastas de desenhos antropomórficos desde o início do século passado, mas o surgimento da cultura furry, propriamente dita, tem raízes nos anos de 1980, segundo Fred Patten – escritor e historiador americano conhecido por seu trabalho nos fandoms de ficção científica, fantasia, anime, mangá e furry. O fenômeno se expandiu com o surgimento da internet e a popularização de personagens antropomórficos na cultura pop. Apesar disso, Mickey Mouse, Robin Hood, entre outros personagens clássicos da Disney são referenciados na cultura furry por terem sido criados antes mesmo da comunidade existir. Desde então, o fandom cresceu e se diversificou, com convenções anuais, fóruns on-line e redes sociais desempenhando papéis cruciais na sua popularização. O amplo acesso à internet e a ascensão da cultura geek também contribuíram para sua expansão. “Acho que sempre existiram, só que agora eles têm um nome para seu estilo de arte – arte furry”, diz FoxxRage, artista freelancer que trabalha com ilustrações furry.  

Imagem: Reprodução Twitter – @DrawByFoxy, FoxxRage

O filme “Zootopia”, lançado pela Pixar no início de 2016, é um exemplo de como a estética antropomórfica extrapola os limites do fandom e atinge o grande público. No longa-metragem, não é preciso fazer muito esforço para encontrar semelhanças com o movimento – um mundo quase que idêntico ao dos humanos, mas repleto de animais que têm seus próprios desejos, famílias, trabalhos e problemas. Em seu livro “Furry Fandom Convention, 1989-2015”, o historiador Fred Patten afirma que durante a semana de lançamento do filme foram usados e-mails e mídias sociais como Facebook e Twitter para organizar watch parties com centenas de pessoas. “Várias festas para assistir Zootopia foram reportadas nos Estados Unidos, Brasil, Canadá, México, Filipinas, Rússia e Cingapura”, relata. 

Cena de ‘Zootopia’ — Foto: Divulgação

Flame, artista digital e ilustrador, acredita que por mais que os furries façam parte de uma nova geração de artistas que estão impulsionando a criação de conteúdo original, desde desenhos animados e jogos, até produtos de consumo, eles “sempre estiveram na mídia, nos produtos e nas histórias”. A subcultura ganha visibilidade à medida que empresas percebem seu potencial de mercado, criando oportunidades para animadores e artistas. Através da colaboração de artistas e escritores, o fandom criou uma uma base fãs que não só consomem produtos, como também produzem. “Eu fico feliz em ver mais desse conteúdo sendo produzido”, completa.

Arte Furry

A estética única dos furries possibilita um espaço fértil para a criatividade artística. Assim, muitos artistas se dedicam a criar arte personalizada, incluindo ilustrações de histórias, designs de fursuits (fantasias de pelúcia) e retratos de personagens, como os de “Zootopia”. Essas ilustrações podem variar de simples retratos a peças complexas e detalhadas, com diferentes cenários, paletas de cores e inúmeras poses, ainda servindo como base para criar novas perspectivas de um mesmo projeto artístico. 

“Eu gosto de fazer desenho de personagens e o pessoal tá gostando dos meus desenhos”, conta Morgana F. Hoefel, designer e ilustradora que enxergou no hobby pela arte furry uma possibilidade de monetização. Desde 2018, ela expõe sua arte em redes sociais, como o Mercado Furry, canal no Telegram com mais de 1.600 membros que anunciam e também compram arte e produtos furry

Depois de dar o primeiro passo e mostrar sua arte nesses grupos, Morgana conta que as pessoas começaram a procurá-la por intermédio de clientes que já haviam feito encomendas anteriormente. A variedade de traços chama atenção e os artistas frequentemente adaptam seu estilo para atender às preferências individuais de seus clientes. “A auto expressão é algo bem forte dentro da própria comunidade”, afirma, ao lembrar de quando começou a perceber variações de acordo com os círculos culturais no próprio fandom e a entender sua timidez e inexperiência. “Eu não sabia para onde ir, com quem falar”, completa.

Além das redes sociais mais comuns, fóruns e plataformas de compartilhamento de arte, como FurAffinity e DeviantArt, são espaços vitais para a conexão entre artistas e consumidores. Os furries podem descobrir novos artistas, discutir suas preferências e fazer solicitações diretamente. Essas plataformas também permitem que os artistas construam uma base de fãs leais que os apoiam ao longo do tempo. “Quem curte o estilo de um artista fica junto dele”, conta Morgana, que precisou de tempo para desenvolver uma base de clientes. Para alguns artistas como Morgana e Doutarina, o Furry Fandom representa uma oportunidade de carreira. 

O valor das comissões 

O fandom furry é complexo. Os indivíduos associam-se ao fato de serem furries por uma ampla diversidade de razões e interesses que pertencem ao antropomorfismo de alguma forma. Assim, “a criação de uma fursona é um processo quase universal para todos no Furry Fandom”, afirma Jake Dunn no estudo “Self as Gem, Fursona as Facet(s): Constructions and Performances of Self in Furry Fandom Performance”. Criar uma fursona é o primeiro passo para entrar no mundo furry, comprar e também produzir arte. Mas o que é uma fursona? “A representação da persona antropomórfica de um furry” – esta é a definição do termo no livro “Fan Identities in the Furry Fandom”. Jessica Ruth Austin, autora da obra, identifica que a fursona pode ser desenhada pelo seu próprio criador, como também pode ser adquirida por meio de comissões feitas por artistas. Ela também acrescenta que um único furry pode ter diferentes fursonas para representar traços da sua personalidade. “A fursona tem papel integral na formação da identidade furry”, e pode ser representada por diferentes espécies, interesses, hobbies, roupas e acessórios. 

Uma das fursonas de Flame disponível em suas redes sociais. Imagem: Reprodução Twitter – @Tfiredoggo, Flame 

As comissões funcionam como solicitações personalizadas feitas pelos membros do fandom que desejam adquirir artes específicas de suas fursonas. Os artistas oferecem serviços personalizados, criando ilustrações únicas de acordo com as preferências e especificações do cliente. “A gente faz um portfólio e quando uma pessoa quer comprar ela inicia uma comissão ou fala qual produto quer”, diz Morgana, que ainda revela que é comum que os compradores também adquiram obras de arte prontas que estavam disponíveis para venda em seu acervo. 

Para tornar a comercialização mais simples, ela, assim como outros artistas, disponibilizam em seus perfis os termos de serviço, com tabela de preços indicando quanto uma arte personalizada pode custar a partir de determinadas especificações, como a complexidade do desenho, quantas fursonas serão desenhadas, quantidade de poses, acessórios, roupas, cenários, pintura, entre outros. Nem sempre o furry que inicia uma comissão tem a sua fursona completamente definida, assim, tanto o artista quanto o comprador trabalham juntos para elaborar o projeto. “Eu tento pegar a ideia do que a pessoa tá querendo me passar e dou alternativas para algo bem personalizável quando a gente tá fazendo a fursona”, explica. Essa prática não apenas fortalece os laços entre os artistas e a comunidade, mas também cria uma dinâmica colaborativa, onde os fãs têm a oportunidade de participar ativamente do processo criativo.

Cada artista determina a partir da sua disponibilidade de tempo e complexidade da obra qual valor irá cobrar por cada comissão. Morgana, por exemplo, calcula o valor de cada projeto por hora trabalhada. Em média, ela cobra R$ 20 por hora em desenhos de menor complexidade, mas isso pode variar. Tudo depende das proporções dos personagens e de como a arte será finalizada. Sheet, ou folha de detalhes do personagem, é o nome dado à ilustração que apresenta a vista frontal, lateral, de costas e também diferentes expressões de um mesmo personagem. Ela alega que este tipo de arte é a mais trabalhosa e pode custar até R$ 450. 

Termo de Serviço usado para definir preço (em dólar) das comissões feitas por Blue para clientes estrangeiros.  Imagem: Reprodução

Apesar de ser uma atividade promissora, fazer comissões ou vender artes previamente produzidas não é a principal fonte de renda de Morgana, que usa deste hobby como uma forma de ter uma renda extra. “Em 2018, quando eu estava sem trabalho, eu estava ganhando uma média entre R$ 350 a R$ 400 por mês”, conta. Mas nem todos os artistas se limitam a buscar compradores no mercado nacional. Este é o caso de Blue, que percebeu que poderia ganhar mais vendendo sua arte em dólar, por meio do PayPal. Segundo ela, o público no Brasil tem mais dificuldade em investir altos valores em produtos artísticos, por mais que sejam muito engajados na comunidade. Em comissões feitas para norte-americanos, Blue confessa cobrar o dobro do que cobraria em reais. “Acho justo pelo meu trabalho, mas para eles é barato converter a moeda, então é muito mais fácil começar pelo público internacional”, conta. 

Um fandom queer
Imagem: Andrews McMell Publishing – Bill Watterson

“Eu sentia uma conexão profunda com Haroldo (Hobbes) – o tigre de pelúcia que se tornava real dentro da imaginação do jovem Calvin”. Ben Silverman relata em sua tese, “Fursonas: Furries, Community, and Identity Online”, que durante a infância, entre os oito e nove anos, era fascinado pelas tirinhas do Calvin e Haroldo (ou Calvin and Hobbes, em inglês). Nas histórias em quadrinhos, o tigre é uma manifestação imaginária de Calvin em seu desejo por companhia. “Mas eu também projetava no personagem minha necessidade por uma presença romântica, um amor além do círculo familiar e amigos, no início da minha pré-adolescência”, lembra Silverman. Este era o começo do processo de desenvolvimento da sua sexualidade. 

O Furry Fandom não é homogêneo e abrange uma ampla gama de experiências e perspectivas. No entanto, alguns estudos, como o de Silverman, sugerem que a comunidade furry é mais acolhedora em relação à diversidade de identidades de gênero e orientações sexuais, proporcionando um ambiente inclusivo para seus membros. Um artigo de 2018 da revista acadêmica Psychology of Popular Media analisa que “dentro destes espaços, membros têm a liberdade de expressar e explorar aspectos da sua identidade”. Ou seja, como um grupo que desvia de normas sociais comuns de comportamento, o Furry Fandom tende a ser mais receptivo com identidades que fogem da heteronormatividade – os queers. Esse ambiente possibilita a inclusão de pessoas da comunidade LGBTQIAPN+, que podem compartilhar conhecimento sobre sua formação identitária como indivíduos queer

Imagem: Acervo pessoal – Doutarina

“Não é incomum ver obras artísticas de fursonas segurando bandeiras do orgulho”, ou até mesmo furries compartilhando em suas redes sociais seus relatos de relacionamento com pessoas do mesmo gênero, sendo estas cis-gênero ou transsexuais, é o que relata Mary Heinz no artigo “LGBT+ Furry Identity Formation and Belonging Online”. O estudo argumenta que os indivíduos podem interagir com pessoas com quem se identificam e que consomem e também produzem conteúdo relacionado com seu nicho de interesse e, para alguns, a exploração deste conteúdo pode ser uma extensão natural do interesse artístico na cultura furry e uma forma de expressar sua sexualidade. “A comunidade é uma das mais abertas para questões de sexualidade e identidade de gênero”, relata Cheetah_Secreto, membro do fandom, que encontrou na pornografia furry um meio de expressão sexual, não só consumindo produtos do gênero como também produzindo. 

A natureza fantasiosa dos personagens antropomórficos oferece uma plataforma para a expressão de fantasias e desejos sexuais, permitindo que os consumidores e produtores de arte furry explorem aspectos de sua sexualidade. Para Superfluffyboi, membro do fandom, a capacidade de se comunicar por meio da arte foi um meio encontrado para superar os tabus do sexo na adolescência. O ambiente amigável criado entre os furries tornou temáticas como pornografia e sexualidade algo simples para ele, que encontrou nesse círculo um local para validar sua sexualidade. “Ter um espaço para poder explorar isso e saber o que eu gosto e o que eu não gosto”, confessa. 

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