Ana Cristina Bittencourt, a “Ninha”, transforma dor em esperança, por meio da cultura
Conheça a história da fundadora do Grupo Mittos, projeto social que é o oxigênio e a resistência da comunidade do Morro do Mocotó, em Florianópolis
Reportagem por Camila Borges

Ninha não sabe responder quando começou a dançar. As rodas de capoeira, as músicas no terreiro e o carnaval de rua sempre estiveram presentes na sua vida. “O batuque me chamou muito cedo porque minha avó era de religião de matriz africana e meu pai tocava em bailes. Eu me criei no meio da dança, no meio do movimento, no meio da luta”. A ligação de Ana Cristina Bittencourt, a Ninha, com a dança é materializada por meio do Grupo Mittos, organização fundada e mantida por ela há mais de 30 anos. O grupo resgata tradições afrodescendentes e realiza a entrega de alimentos para quem mais precisa. Além das aulas de dança, são conduzidas reflexões sobre o racismo e a importância de valorizar a cultura negra.
Mittos, que dá nome ao projeto, foi um capoeirista vítima de violência policial assassinado em frente aos olhos de Ninha que, apesar de indignada, preferiu transformar a dor em esperança. No alto do Morro do Mocotó, Ninha oferece aulas de dança gratuitas para crianças que não teriam como pagar por elas. “Em 1986 aconteceram cinco assassinatos aqui. Depois do enterro eu fiz uma roda de capoeira e lancei o Grupo Mittos”. Ela define que o grupo “é um símbolo de resistência, é um oxigênio na vivência na comunidade”. O prédio que abriga o projeto é uma antiga base policial conquistada também a partir da dança. “Eu estava com as minhas crianças na rua, então resolvi invadir. Fizemos uma audiência pública e as crianças falaram a partir do corpo delas, dançando. Daí a polícia saiu e a gente conseguiu tocar o projeto”, explicou.
A rotina de Ninha começa cedo, às cinco da manhã, quando organiza a casa e vai para a UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), onde tem aulas na graduação de Educação para o Campo. À tarde, trabalha no posto de saúde, local em que ocupa a função de agente de saúde há mais de 20 anos. Depois vai para o Grupo Mittos onde permanece até uma da manhã. “Um sonho? Só ficar no projeto.” Mas a vontade dela é impedida pela necessidade de sustento. “Não gosto de trabalhar dentro do posto. Eu sou vida, eu gosto de movimento. Se eu pudesse, trabalharia só no projeto. Mas aqui todo mundo é voluntário, não temos investimento de fora”, diz.
O Grupo Mittos atende cerca de 100 crianças, de segunda a sexta, com aulas de dança que vão das 18h às 22h. O projeto conta com cinco professores voluntários, ex-alunos do grupo. Ninha ressalta que antes de iniciar as aulas de dança é preciso alimentar as crianças. “Sabe qual é a nossa preocupação? A fome. Você vai ver, as crianças comem aqui”. Cerca de 12 mães auxiliam no preparo do lanche e na confecção dos figurinos usados nas apresentações. As mães também são voluntárias e “transformam a tristeza em esperança”, explica Ninha.

Foto: Camila Borges
Ao conversar com mais de quinze alunos do projeto, adjetivos como “mãe”, “batalhadora” e “mulher negra” foram usados pelas crianças para descrever aquela que fundou e lidera o projeto. “O Grupo Mittos é tipo uma escola. Mas é uma escola de dança. A Ninha é como se fosse uma mãe pra mim. Aqui é como se fosse uma casa”, explicou Jasmine, de sete anos. “O Grupo Mittos é minha família. Aqui é tipo como se fosse uma casa pra nós. Aqui a gente tem dança afro. Aqui a gente aprende mais dança. Aqui é como se a gente fosse filho da Ninha”, disse Yuri, de dez anos.

Foto: Camila Borges

Apesar das dificuldades, Ana explica que o Morro do Mocotó abriga muitos talentos. “O ponto forte do nosso morro é a cultura, essa é a nossa potência”. Ela ressalta que as aulas se relacionam com o cotidiano dos alunos e que as crianças primeiro pesquisam para depois dançar. “Os alunos não estão fazendo só por fazer. Cada dança tem uma história. Nós escolhemos as músicas que falam sobre nossas guerras, nossas conquistas, nossas vitórias”. Isso demonstra como o Grupo Mittos, além de proporcionar aulas de dança, também fornece reflexões sobre a história de luta e resistência do povo negro.
A Ninha e o Morro do Mocotó
Filha de uma empregada doméstica e de um tecelão, Ana Cristina Bittencourt é a irmã mais velha de três irmãos e sempre morou no Morro do Mocotó. Sua família foi uma das fundadoras do local. Seu tio-avô, Edmundo Bittencourt, trabalhava na marinha e foi um dos responsáveis por trazer pessoas para a construção da ponte Hercílio Luz. “Quando meu tio voltava das viagens como marinheiro, trazia restos do boi para fazer o mocotó porque percebia que os familiares passavam fome. Meu tio entendeu que podíamos vender o mocotó para os operários da ponte e transformar em dinheiro para a comunidade”. O mocotó é um caldo produzido com língua, bucho e pata de boi. “Para nós só ficam os restos”, afirmou Ninha. Por ser um alimento muito consumido no local, o mocotó batiza o espaço.
Na sua visão, o Morro do Mocotó continua sendo um quilombo, o único local onde os ex-escravizados podem habitar. O morro circunda o centro de Florianópolis, sendo vizinho do Hospital da Caridade e perfurado pelo túnel Antonieta de Barros. O local é um exemplo vivo de como o racismo também é ambiental. Para chegar ao Grupo Mittos é necessário pegar a linha 765 – Morro da Queimada. No ônibus já é possível observar onde a maioria das pessoas negras moram. “Aqui é o nosso quilombo, é o nosso refúgio, é a nossa identidade. Onde resta para nós morar é aqui”.
Ninha gosta do local onde vive, mas critica a inércia do poder público e a violência policial. “Aqui é a nossa felicidade, onde tudo acontece, mas quando vem uma violência policial, acabando com tudo, matando adolescente, é muito triste. Os policiais justificam as mortes dizendo ‘mas ele era traficante’, só que o governo nunca subiu para dar oportunidade para os nossos jovens”, denuncia.
Uma vida dedicada à educação
Subindo o morro já é possível observar que a educação é a grande esperança daqueles que ali vivem. Uma faixa em frente a uma casa no Morro do Mocotó estampava “Brayan, sua família está muito orgulhosa com sua aprovação em Odontologia na UFSC”. Ninha contou que o momento mais feliz da sua vida foi quando um ex-aluno do grupo contou que tinha passado no vestibular para o curso de Direito. “O menino veio me contar que foi aprovado e disse que eu fui a motivação dele. Naquele momento eu senti vitória e pensei: tenho que continuar lutando para mandar nossos jovens para frente.”
Ela cursou o magistério, fez o curso técnico em enfermagem e atualmente estuda Educação para o Campo na UFSC. “Nós somos pobres, mas a gente se vira, a gente estuda, a gente luta pelas bolsas e chega lá. Temos cinco ex-alunos do Mittos na universidade. Uma fazendo Direito, outra Relações Internacionais, outra Educação Física, Administração. Isso é o meu maior orgulho”.
Ninha estuda, trabalha, cuida do Grupo Mittos e também da família. Ela tem 48 anos, é casada e mãe de dois filhos, Brenda e Bruno. “Eu tenho uma família maravilhosa e um marido maravilhoso. Meu marido era traficante, mas quando fiquei grávida da Brenda eu perguntei para ele ‘qual vida você quer?’ Daí ele foi estudar, foi trabalhar e a gente construiu juntos. Hoje a gente tem dois filhos que são o nosso orgulho”. Seu filho mais novo está no Ensino Fundamental e a filha mais velha cursa Relações Internacionais na UFSC.
O Grupo Mittos é considerado seu maior legado e Ninha ressalta a importância social do projeto para evitar que crianças e jovens entrem na criminalidade. “O Grupo Mittos é o lazer das crianças, ajuda a mexer o corpo, a entreter a mente. Nós não temos lazer aqui em cima. O poder público não está aqui”. A falta de opção de entretenimento saudável e de garantia de direitos básicos impacta na possibilidade de vida das crianças e dos jovens. “A gente não tem amparo do governo, daí é mais um no beco, mais um na estrada, mais uma mãe chorando na escadaria, mais um corpo esticado pedindo socorro”, enfatiza.
Ana Cristina Bittencourt define seu trabalho como uma trajetória de felicidade e luta. “Meu trabalho é plantar e colher a melhor semente do mundo, que é a minha juventude. Mocotó é luta, é felicidade, é liberdade. A gente chora calada, as lágrimas escorrem pela escada, mas somos potentes. A gente cai, levanta, mas estamos lutando por um novo território, por uma nova vida. Tenho muita esperança na juventude. O nosso quilombo é luta e nós somos luta”, completa.
O trabalho de Ninha já foi reconhecido pela escola de samba “Os Protegidos da Princesa” e também premiado pelo mandato da vereadora Tânia Ramos (PSOL), que concedeu a Ninha o título de “Mulher Empoderada”. Em dezembro de 2024, ela foi homenageada em Brasília com o Prêmio Periferia Viva, iniciativa do Governo Federal que destinou 50 mil reais a projetos que buscam minimizar os efeitos da desigualdade social. No entanto, para Ninha, seu maior troféu não está em uma cerimônia, mas nos frutos que colhe cotidianamente. “Meu maior prêmio é ver a juventude lutando, se mobilizando e fazendo diferente. Nossa vida é essa, a gente ajuda o próximo, a gente pensa no coletivo e faz a diferença”, disse emocionada.