Foto: Rodrigo Barbosa / Cotidiano UFSC
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Vale das Palmeiras: famílias sofrem despejo de suas casas e abrigo em São José

Às vésperas das festas de fim de ano, cerca de 60 famílias são retiradas de seus lares na região metropolitana de Florianópolis; local seria área de risco

Reportagem de Erika Artmann

Eram 6h30 da manhã de segunda-feira, dia 5 de dezembro de 2022, e ainda chovia quando cerca de 60 famílias foram despejadas. Em frente à ocupação onde moravam, policiais acompanhavam a prefeitura de São José na retirada das pessoas do local, próximo à avenida das Torres. Dois tratores estavam por perto para que, cerca de três horas depois, as casas fossem destruídas com tudo o que restava dentro delas. O motivo para a retirada dos moradores do local seriam as chuvas intensas que atingiram Santa Catarina no início do mês. Os escombros das construções ainda estão sobre o morro no qual, um dia, vivia a comunidade do Vale das Palmeiras. Os moradores foram levados para um abrigo temporário no Ginásio Municipal José Zanelato.

Eram 14h da tarde de uma sexta-feira, dia 23 de dezembro – véspera de Natal -, quando as famílias que ainda estavam no Ginásio Municipal José Zanelato foram retiradas do abrigo temporário. A Guarda Municipal chegou armada ao local, sem aviso prévio, e sem contar aos moradores remanescentes para onde eles seriam levados. Duas mudanças forçadas em menos de um mês. Uma das moradoras, que prefere não se identificar, contou que a ação “foi muito feia”. A maioria das pessoas queriam ficar, mas nem com a presença dos advogados populares conseguiram respostas sobre seus destinos. “Quando eu cheguei [no ginásio] estava a guarda e não queriam nada. O cara da polícia falou assim: ‘Se vocês não tirarem as coisas agora, tiramos a força e vamos jogar tudo na rua’.” Mais tarde, um oficial informou que seriam levados para o Centro Educacional Municipal Cidade da Criança.

A desocupação do Vale das Palmeiras foi solicitada pela prefeitura de São José, região metropolitana de Florianópolis, com base em um laudo de riscos da Defesa Civil, elaborado após o desabamento de uma parte do talude do Vale das Palmeiras (área em que as casas estavam construídas), com a queda de algumas árvores de grande porte sobre a avenida, no dia 30 de novembro. Em um documento de quatro páginas que considerava um território de 100 metros, no qual as famílias moravam – assinado no dia seguinte à ocorrência -, afirma-se: “As edificações na margem da linha de corte do talude colapsado, bem como as que estiverem na poligonal de influência do bulbo de pressão do solo, deverão ser desocupadas e demolidas imediatamente”.

 
Foto: Brigadas Populares

Os trâmites judiciais que permitiram o despejo determinavam a garantia de aluguel social para as famílias, vetavam a destruição dos móveis e obrigavam o fornecimento de transporte para os itens das casas afetadas. Apesar disso, até hoje,, no talude, é possível ver roupas, medicamentos, documentos e restos de eletrodomésticos entre os destroços. A família de Iliane de Oliveira é uma das que perderam seus pertences. A casa foi a terceira a ser destruída e, enquanto retiravam os móveis, um policial entrou e disse que não tinham mais tempo e que começariam a demolição. “Quando eu subi para desocupar, eu passei mal, caí na subida e fui para ambulância. Depois vim para cá [ginásio] e não pude mais voltar. Perdi muita coisa, muita gente perdeu muita coisa. Não só eu como outras famílias que ficaram sem nada”, afirma. Alguns moradores que retiraram os móveis a tempo enfrentaram a chuva que danificou os produtos eletrônicos. Um depósito guarda os itens até que as famílias encontrem novas casas. 

No espaço improvisado para receber os moradores no Ginásio, o conforto e a privacidade não existem. Toalhas, roupas de cama e doações que chegavam eram trancadas com chave, sem acesso direto para as famílias. Era preciso autorização da Assistência Social para acessar os utensílios. A comida, servida três vezes ao dia, não agradava ao paladar da maioria por falta de tempero. Os colchões estavam no chão, o que tornava difícil manter os animais de estimação, como cachorros e galinhas, longe do espaço onde as pessoas dormiam. Alguns ficaram doentes e apresentaram sintomas respiratórios. A cozinha também era restrita aos funcionários no Zanelato, mas ao chegarem no Centro Educacional Municipal Cidade da Criança, passaram a ter acesso ao espaço para que cozinhem seu próprio alimento.

As ações judiciais sobre a Ocupação Vale das Palmeiras iniciaram em  2020, com um pedido de reintegração de posse da proprietária do terreno. No entanto, como as famílias estavam no local por um ano e um dia – período de Posse Velha – era necessário realizar audiência com os residentes antes de qualquer desocupação e, por isso, o processo ficou suspenso. A partir daí, as famílias começaram a se organizar politicamente, com suporte social e jurídico das Brigadas Populares. Os moradores organizaram assembleias. Uma das primeiras moradoras da comunidade, Iliane de Oliveira, foi escolhida como liderança comunitária do bairro que se formava. 

Iliane chegou ao Vale das Palmeiras em 2019, quando sua família foi despejada após o desemprego impedir o pagamento do aluguel. Quando chegou, outras duas casas já estavam construídas. “ Perguntamos se podia fazer uma casinha e falaram que sim. Eu não tinha material para fazer minha casa, ganhei os MDF e fiz a minha casa com dois cômodos. Não tinha água ou luz, mas a gente conseguiu botar. E foi chegando um, chegando outro, se aproximando e fazendo suas casinhas”, conta. No momento da destruição da Ocupação, a casa de Iliane já era mobiliada e construída com madeiras. Muitos dos seus móveis foram destruídos. 

O processo que culminou na desocupação, em dezembro de 2022, é uma ação do Ministério Público contra o município de São José e a dona do terreno, no qual alega-se que a ocupação traz danos à Área de Proteção Ambiental no qual está o talude. A primeira tentativa de despejo foi determinada neste trâmite. “Os advogados populares que atuam na causa ficaram surpresos e achamos que aquilo não poderia não ser verdade porque na ação de reintegração de posse – que era a ação que a gente tinha conhecimento -, não tinha nada nesse sentido. Estava tudo suspenso, mas então descobrimos essa ação civil pública ambiental”, conta Guilherme Cidade Soares, mestrando em Direito da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e advogado popular à frente do caso. Durante a pandemia, os despejos foram suspensos em função de uma decisão do STF (Supremo Tribunal Federal). 

As permissões de despejo só voltaram a ser assinadas recentemente. No caso do Vale das Palmeiras, o Laudo da Defesa Civil foi anexado pela prefeitura com urgência para análise do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, que permitiu a ação. Dessa vez, as famílias foram citadas 48h antes da desocupação, mas estas alegam que houve “decisão política” porque ali estava uma comunidade organizada que pedia condições dignas de moradia ao Estado, como projetos habitacionais, que não existem desde 2006 no município. “O despejo foi feito, as casas foram destruídas, mas o material continua lá. Para todos os fins, o peso continua na terra e isso demonstra as insuficiências de todo esse processo. Hoje, do ponto de vista do apoio às famílias do ginásios, o que a gente tenta garantir é a política de assistência do município”, diz o advogado. 

No que costumava ser o Vale das Palmeiras, a residência de Cláudia Francielle da Silva de Oliveira era simples, mas tinha espaço suficiente para abrigar as oito pessoas de sua família. Além dela e dos filhos, sua mãe e irmã moravam ali, e havia quartos suficientes para garantir a privacidade de todos. Nos dias de chuva forte, uma árvore balançava e fazia barulho ao lado da casa de Claúdia, mas ela se sentia segura. “Minha casa não ia cair”. Na quarta-feira, dia 21 de dezembro, conseguiu uma nova casa para viver, mas o tempo que passou no Ginásio não foi fácil: ficou doente e precisou se afastar do trabalho por alguns dias, além de enfrentar restrição de acesso à cozinha e precisar se contentar com a comida “ruim e com pouco tempero” que era oferecida aos moradores. 

Os preços altos dos aluguéis associados às restrições impostas pelos locatários dificultam o acesso dos antigos moradores do Vale das Palmeiras aos aluguéis sociais. A moradora que não quis se identificar – mencionada no início desta reportagem -, tem três filhos e contou ouvir de um locador durante a procura por uma nova casa: “eu aceito só os dois maiores, o mais novo não”. Outros passaram por situações assim: não aceitam filhos, não aceitam pets. Por isso, uma das reivindicações do movimento é pela realocação dessas famílias em programas de habitações, por serem despejadas com argumentos de riscos ambientais.

“O Vale das Palmeiras tinha o trabalho comunitário de reivindicar para a prefeitura uma moradia adequada. O Vale das Palmeiras ficava em uma área de encosta e que todo mundo percebia a carência daquele lugar e a falta de atendimento pelo poder público. Então, o Vale das Palmeiras, desde 2020 para 2021 ele tentava negociar com a prefeitura uma outra área para que fosse construído um projeto habitacional concedido para que as famílias pudessem morar com mais dignidade. Embora todo mundo gostasse dali, as pessoas viviam relativamente bem, elas queriam uma moradia melhor com saneamento básico e tudo assim”, explica Jefferson Meier, mestre em planejamento ambiental pela UDESC e que atende o Vale das Palmeiras junto às Brigadas Populares. 

A reportagem do Cotidiano entrou em contato com a prefeitura de São José para ouvir o outro lado sobre a retirada das famílias do Vale das Palmeiras. Foram sete perguntas enviadas, mas nenhuma foi respondida. A assessoria do município limitou-se a dizer que “foram 62 famílias nessa ação social porque era área de risco. Foram para esse abrigo no Jardim Zanelatto. O Abrigo inclusive já está sendo fechado porque, grande parte, mais de 80% das famílias foram para a locação social”.

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