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Plano Diretor é aprovado na Câmara apesar de investigações por ilegalidade e conduta ilícita de agentes públicos

Projeto de lei que altera o planejamento urbano acumula inquéritos civis no MPSC

Por Jullia Gouveia

Após aprovação em segundo turno na Câmara Municipal de Florianópolis nessa segunda-feira (24), o projeto de lei que altera o Plano Diretor da cidade passa pela análise final na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), última etapa na tramitação antes de ser enviado ao Executivo. Sem emendas, o PLC 1911/2022 foi aprovado com 19 votos favoráveis e 4 contrários, apesar de ainda ser objeto de inquéritos civis em andamento no Ministério Público de Santa Catarina (MPSC).

A votação da proposta havia sido suspensa no domingo pelo Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC) em virtude de um pedido cautelar realizado pela Associação Florianopolitana das Entidades Comunitárias – UFECO, que apontou mudanças irregulares na natureza do Conselho da Cidade e consequente prejuízo aos debates necessários para a elaboração de um Plano Diretor participativo.

Entenda a liminar que suspendeu a votação

O Conselho da Cidade é um órgão que reúne representantes do Poder Público e da sociedade civil organizada e tem como finalidade discutir e acompanhar o Plano Diretor, bem como propor diretrizes para a implementação da Política Municipal de Desenvolvimento Urbano. A Lei Complementar n° 482/2014 e o próprio regimento interno do Conselho estabelecem seu caráter consultivo, ou seja, sua função é debater, sugerir e apresentar pareceres a respeito de políticas públicas. No entanto, durante a revisão do Plano Diretor, a Prefeitura atribuiu ao Conselho da Cidade também o caráter deliberativo através da Resolução 001/CC, permitindo que o órgão tivesse poder de decisão. 

 

A UFECO argumenta que, na prática, essa mudança mitigou as discussões e obrigou o Conselho a realizar votações apressadas. A resolução estabelece um prazo de dez dias a partir do início do ciclo de debates para que os conselheiros encaminhem seus votos e possíveis emendas ao projeto. Ela também diz que as atas das reuniões devem ser assinadas dentro de 24 horas – processo que, segundo o regimento interno do órgão, deveria ser feito em Plenário.

 

O documento ainda reúne protestos de diversos órgãos governamentais em relação à imposição de realizar o projeto às pressas. O parecer da Fundação Municipal do Meio Ambiente (FLORAM) considera o prazo que tiveram para enviar seus pareceres “inexequível, visto a complexidade e extensão da matéria e o contexto de sobrecarga a que está submetido o corpo técnico da DILIC/FLORAM”. Funcionários do Instituto de Planejamento de Florianópolis (IPUF) relatam ocasiões em que tiveram o prazo de uma semana para apresentar suas colocações sobre pontos da minuta do Plano Diretor, tornando inviável a análise completa do material.

 

Além disso, o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) afirma que o Plano Diretor possui mais retrocessos que avanços ambientais e que os mapas de zoneamento não foram apresentados no projeto, o que impede a preservação adequada das Áreas de Preservação Permanente (APPs). A mesma crítica foi feita pelo  Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama). 

 

A decisão de aceitar o pedido da UFECO e suspender a votação foi assinada pelo juiz Rafael Germer Conde. No despacho, ele pontua que a pausa temporária na tramitação do Plano Diretor não causa prejuízo à cidade ou ao Poder Legislativo, já que mais tempo de discussão pode contribuir para aperfeiçoar o projeto, o que é de interesse público e coletivo. A Defensoria Pública de Santa Catarina, que instaurou processo administrativo para apurar ilegalidades no Plano Diretor, emitiu um parecer defendendo a manutenção da liminar por segurança jurídica, uma vez que a suspensão da votação do Plano não oferece risco de danos irreversíveis.

 

Na segunda-feira, a prefeitura de Florianópolis pediu que o TJSC reconsiderasse a suspensão, afirmando que o Plano Diretor foi discutido à exaustão e que os “esparsos críticos” do processo não se conformam com a vontade democrática e discordam da revisão por questões ideológicas. Pouco depois do início da sessão na Câmara, às 16h, o pedido foi acatado e a liminar de suspensão foi derrubada pela juíza Cleni Serly Rauen Vieira, permitindo que a votação ocorresse normalmente.

Uma ilha, duas cidades

Alguns manifestantes vistos, em segundo plano, através das grades das janelas da Câmara
Grupo contrário ao Plano Diretor teve que assistir a votação do lado de fora | Foto: Maria Clara Sebben

Na Câmara, as paredes concretizaram a divisão da população em torno do projeto. Para evitar conflitos, foi divulgada previamente uma lista de inscrições para assistir a votação na galeria do Plenário. Aqueles que conseguiram garantir sua vaga no camarote manifestaram apoio ao Plano Diretor, vaiando vereadores da oposição e comemorando com entusiasmo a aprovação do projeto. Entre os espectadores, estavam representantes de entidades da sociedade civil favoráveis à revisão, como membros da Associação Comercial e Industrial de Florianópolis (ACIF) e empresários do ramo da construção civil.

 

Do lado de fora da Câmara, atrás de grades de proteção e sob vigilância da Guarda Municipal, manifestantes contrários à aprovação do Plano protestaram com cartazes, tambores e discursos, em sua maioria realizados por membros de associações de moradores e acadêmicos. Duas moradoras, vestidas de luto, lamentavam a “morte” do meio ambiente ao lado de um caixão cenográfico.

A vereadora Tânia Ramos (PSOL) conta que, na primeira votação do projeto na Câmara, em 22 de março, os manifestantes da oposição teriam sido deixados na chuva, sem permissão para entrar na Casa, enquanto as galerias teriam sido “lotadas” com membros da ACIF, da Câmara de Dirigentes Lojistas de Florianópolis (CDL) e funcionários com cargos comissionados. “Os vereadores do governo disseram: ‘Teu povo tá na rua porque a gente foi mais inteligente, a gente se articulou’”. A moradora Telma Coelho lamenta não poder ocupar a Câmara: “Fecharam uma via pública e não deram ao povo o acesso à Casa do povo”.

Investigações em andamento

As divergências em relação à legitimidade do projeto se refletem também na Justiça. Ao longo do processo de revisão, o Plano Diretor acumulou, entre outros: Termos de Ajustamento de Conduta (TACs) para garantir que fossem realizadas audiências suficientes com a população; diversos pareceres favoráveis e contrários à condução dos debates pela Prefeitura; e denúncias encaminhadas ao MPSC e ao Ministério Público Federal (MPF) que deram origem a múltiplos inquéritos civis.

 

Um dos inquéritos em andamento no MPSC trata de ilegalidades no zoneamento sancionado pela Câmara e pela Prefeitura para um imóvel na Praia do Santinho, de propriedade da Procave Investimentos e Incorporações Ltda., empresa gerida por um dos principais doadores da campanha do ex-prefeito Gean Loureiro em 2020. Esse imóvel apresenta cinco zoneamentos diferentes, o que vai contra a lei e impede a regulamentação adequada do uso do solo, ocupação da região e preservação ambiental. O documento menciona que essa irregularidade vem acontecendo em outros locais da cidade, como nas imediações do Parque da Luz e da Ponte Hercílio Luz, no Centro. Instaurado em 2019, o inquérito também busca averiguar a contratação da empresa provedora do software de geoprocessamento utilizado pelo município.

 

Outra investigação instaurada apura denúncias de conflito de interesses e violação de princípios administrativos na elaboração do Plano Diretor atribuídos ao atual secretário municipal de Planejamento e Inteligência Urbana e presidente do IPUF, Michel Mittmann. O Ministério Público investiga a participação do secretário em eventos na Europa em 2018 e 2021 que teriam sido custeados pela iniciativa privada, como divulgou o próprio Floripa Sustentável.

 

O MPSC também se debruça sobre a denúncia da ligação de Michel com empresas do ramo imobiliário. Ainda que tenha negado qualquer vínculo com atividades privadas, o secretário é sócio da Enge+ Empreendimentos Ltda. e, de acordo com relatos de funcionários do IPUF, teria levado seus sócios e outros empresários para opinar diretamente na elaboração do Plano Diretor.

 

Em julho de 2022, quando sua resposta aos fatos narrados no processo foi solicitada pelo MPSC, o secretário respondeu que não possui vínculos com sua antiga empresa, Methafora Arquitetura S/S Pura, desde 2019, e defendeu a legalidade do Plano Diretor. Em setembro do mesmo ano, o processo foi arquivado, mas foi reaberto após concessão de recurso e apresentação de novas evidências. Contatada pelo Cotidiano, a Secretaria Municipal de Planejamento e Inteligência Urbana não se manifestou.


Ainda existem inquéritos civis sobre suposto descumprimento de TACs firmados pelo MP em relação às audiências públicas e sobre a ausência de estudos técnicos, ambientais, urbanísticos e sociais que embasem o Plano Diretor. O MPF, por sua vez, relatou estar buscando informações sobre riscos ambientais que o projeto pode representar, enquanto a Defensoria Pública do Estado instaurou processo administrativo para apurar “irregularidades, ilegalidades e discordâncias em relação ao processo de revisão”. Um dos documentos que fundamentam esse processo, assinado por 46 organizações, elenca 29 ilegalidades e inconstitucionalidades no texto do Plano Diretor, entre elas:

Artigo 5º:
Estabelece os limites entre o público e o privado e, na nova redação, diz que, havendo conflito entre termos legais, “prevalecerá a redação mais favorável ao particular”, o que iria contra o Estatuto das Cidades, que impõe que normas devem “regular o uso da propriedade urbana em prol do coletivo”.

Artigo 28:
Permite a circulação de veículos automotores nas dunas para atender atividades turísticas ou tradicionais mediante autorização prévia. É insistido que essa medida fere o artigo 5º da Constituição, segundo o qual todos são iguais perante a lei, uma vez que abre exceções à legislação para um grupo que realiza atividade econômica.

Artigos 71, 162 e 176:

O artigo 71 modifica critérios para o uso de APPs, em princípio indo contra a Lei Federal 12.651/2012 e a Constituição, já que a legislação sobre essas áreas é competência da União e, no entendimento dos denunciantes, não cabe ao Município alterá-la.

Pelo mesmo motivo, também são considerados inconstitucionais os artigos 162, que estabelece novas regras para a ocupação de APPs, e 176, que reescreve o texto para incluir as Áreas de Preservação Permanente nas categorias que podem ser preservadas pela iniciativa privada com incentivo do Município.

Artigo 26:
Transfere ao proprietário da Reserva Particular do Patrimônio Natural a incumbência de cuidar de sua conservação e proteção, competendo ao Município apenas oferecer apoio nessas ações. Afirma-se que essa medida vai contra o artigo 225 da Constituição Federal, que impõe ao Poder Público e à coletividade o dever de defender e preservar o meio ambiente.

Artigos 40 e 77:

O artigo 40, na visão dos denunciantes, exime o Município do dever de oferecer acesso universal ao saneamento ao permitir que o responsável pela edificação instale e opere sistema de tratamento de esgoto próprio. Esse artigo iria de encontro à Lei Federal 11.445/2007, que impõe ao Poder Público o dever da universalização do acesso ao saneamento básico e estabelece que os serviços de saneamento prestados por entidades externas dependem de celebração de contrato. 

O artigo 77 é criticado com base na mesma lei por revogar o inciso que obriga residências geminadas a apresentar reservatórios individuais de água potável e de tratamento de esgoto.

Artigo 44:
Permite a ocupação e construção de edifícios com mais de um pavimento em áreas sujeitas a alagamento ou inundação, o que violaria a Lei Federal 12.608/2012, que obriga os municípios a tomar providências para diminuir o risco de desastres, incluindo evitar a edificação em áreas suscetíveis a deslizamentos, inundações e demais riscos geológicos e hidrológicos;

 

Artigos 67 e 92:
Autorizam o parcelamento do solo e construção em terrenos “sem condições geológicas adequadas para a construção de edificações”, desde que “existam soluções de engenharia para tanto”. Essa medida também feriria a Lei 12.608/2012, uma vez que estaria dando margem para a ocorrência de mais desastres ambientais ao invés de buscar evitá-los.

Reta final

Após ter sua redação final autorizada pela CCJ – comissão da Câmara que tem como função analisar se as propostas legislativas têm fundamentação constitucional, legal, jurídica e regimental –, o projeto de revisão da lei do Plano Diretor deve ser enviado ao Executivo para aprovação pelo prefeito Topázio Neto.

Como a matéria é de autoria do Poder Executivo de Florianópolis, não há dúvidas entre os legisladores que, caso a tramitação siga sem mais obstáculos, sua sanção é garantida. Em entrevista coletiva, o presidente da Câmara, vereador João Cobalchini (União Brasil), parabenizou o prefeito e a cidade pelo projeto: “Creio que não é uma vitória da Câmara Municipal de Florianópolis, mas sim do Executivo, pois tem um papel fundamental na aprovação deste projeto. Não vai mudar nosso município da noite para o dia, mas é muito melhor e mais atualizado que o anterior”.

Os representantes que se opuseram à lei, por outro lado, insistem que o Plano Diretor estaria repleto de erros jurídicos e ilegalidades desde sua elaboração. O vereador Afrânio Boppré (PSOL) acredita que, mais cedo ou mais tarde, a lei será judicializada: “Os vereadores sabem que a lei está cheia de inconstitucionalidades, o prefeito sabe, o empresariado sabe, mas eles apostam na morosidade da Justiça. Daqui a cinco, seis, sete anos, nós vamos começar a ganhar algumas causas. Só que aí, o prédio que não podia ser construído já está com moradores. Isso se chama inconstitucionalidade útil”.

Nessa quinta-feira (27), a Defensoria Pública de Santa Catarina enviou ao Presidente da Câmara de Vereadores e ao Prefeito Topázio Neto a recomendação de que a tramitação do PLC 1911/2022 seja suspensa ou vetada devido a infrações legais identificadas no projeto. O órgão também pediu à 3ª Vara da Fazenda Pública que suspenda o andamento do projeto antes de sua homologação pelo Prefeito, intime o Município a provar que cumpriu o TAC firmado pelo MPSC e, ao final, anule o processo atual de revisão do Plano Diretor.

A tramitação do projeto pode ser acompanhada pelo site da Câmara, que conta com uma pasta digital que reúne o projeto e documentos relacionados, como relatórios e ofícios de órgãos técnicos.

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