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Reportagens

O veganismo possível: pelo fim de toda exploração

A popularização do veganismo como uma corrente única e elitista pode acarretar no apagamento de uma pauta importante

Reportagem por Luana Consoli e Mateus Spiess

Armada de um megafone e um balde de tinta vermelha, a jovem adentra o restaurante. Suas roupas brancas, cobertas de manchas rubras como respingos de sangue, atraem o olhar dos clientes que aguardam sua vez de serem atendidos. Sem hesitar, ela derrama a tinta no chão do estabelecimento – uma filial da rede de fast food KFC, cujo cardápio é composto majoritariamente por receitas à base de frango frito, em Melbourne, na Austrália. Sob o olhar atônito daqueles ao seu redor, ela ergue o megafone, e grita: “Parem o holocausto animal!”

Mulher de máscara e roupa branca manchada de tinta vermelha que parece sangue, segura um megafone dentro de uma loja de fast food

A jovem em questão é Tash Peterson, uma ativista vegana da Austrália Ocidental, notória em seu país por protestos similares. Em outras ocasiões, ela invadiu restaurantes de redes de fast food para protestar contra a exploração animal. Seus atos, acompanhados do som de animais em abatedouros e gritos de ordem em seu megafone, foram publicados em suas mídias sociais, que contêm uma coleção de registros da ativista em situações parecidas.

“Não é de admirar que as pessoas odeiem veganos”, é a réplica que mais marca aqueles que assistem ao vídeo, publicado no TikTok da ativista, @vganbooty69. O comentário – proferido por uma das pessoas presentes no KFC no momento do protesto – e seus ecos podem ser vistos nas reações à postagem no próprio TikTok, assim como em outras redes, e em matérias tanto na mídia australiana quanto no resto do mundo.

Tash Peterson, Austrália, em manifestação no KFC de Melbourne |Imagens: instagram @vganbooty

Outro comentário recorrente diz respeito a um aspecto distinto do protesto: “Quem limpou tudo depois que ela foi embora?”. Essa pergunta foi feita não apenas por pessoas de dieta convencional, apesar do contexto e das motivações da ativista. Enquanto um grupo de simpatizantes demonstrou apoio ao ato, um grande número de ativistas veganos no mundo somaram suas vozes ao coro de reprovação. Tash postou fotos limpando o local, mas é ambígua sua motivação – podem ser vistos policiais no plano de fundo dessas imagens, o que leva a entender que talvez os ativistas foram forçados a limpar o espaço.

Veganismo, movimento elitizado

Apesar de discordâncias, o impacto da ação da jovem australiana é inegável. Foram mais de oito milhões de visualizações no vídeo original, e a discussão levantada pelas imagens atravessou o mundo. No Brasil, o debate se deu em torno da efetividade dessa forma de protesto, e o impacto que ele teria naqueles que o presenciaram.

Vegana há cerca de dois anos, Virgínia Cecconi, estudante de Relações Internacionais na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), critica o ato de Tash Peterson. “Os trabalhadores de redes de fast food são ridiculamente explorados, conseguem ser mais explorados do que a maioria dos outros trabalhadores. Quem é que vai limpar aquilo? Qual vai ser o diálogo daquele veganismo com os trabalhadores da KFC depois disso?”.

Leonardo Santos, dono do perfil de Instagram @veganoperiferico, diz que há duas formas de se propagar o veganismo: por meio do veganismo estratégico ou por seu oposto, o veganismo popular. Em um artigo publicado no Mídia Ninja, em 2019, ele detalha: “O veganismo de consumo, mais conhecido como veganismo estratégico, deposita esperanças nos produtos industrializados, subprodutos veganos”. Esses itens, de acordo com o influenciador, são produzidos por grandes corporações, que não se preocupam de verdade com o impacto de suas operações. “A maioria das pessoas que apoiam o veganismo estratégico são totalmente despolitizadas. Elas acreditam que através do capitalismo vamos acabar com a exploração animal”, complementa.

Assim como Virgínia, Leonardo é adepto do movimento contrário ao veganismo liberal ou estratégico, o chamado veganismo popular que, de acordo com eles, é mais condizente com a realidade brasileira. O veganismo popular é um movimento social e político que prega o fim da exploração e do sofrimento animal decorrentes do capitalismo, em todos os aspectos da vida. Para Fábia Busatto, vegana e estudante de Relações Internacionais da UFSC, “o veganismo popular é um movimento político, anti especista, que luta pelo fim da exploração de todos os animais – animais humanos e não humanos”.  Virgínia complementa, “é um veganismo que entende a condição do trabalhador, a condição das pessoas. Sabe que não é através dessas mudanças estratégicas, através de produtos, que teremos uma revolução.”

Por pregar o fim da exploração, é necessário que o veganismo seja acessível a diferentes classes sociais. Ana Carolina e Ester Santos, donas do restaurante O Tempero X, trabalham apenas com produtos não derivados de animais. “Não somos totalmente veganas na nossa vida. Começamos a cozinhar comida vegana por necessidade de cozinhar comidas baratas, acessíveis à nossa realidade”, conta o casal. O restaurante é a casa de Ana e Ester, e está localizado no morro do Quilombo, em Florianópolis. Apesar dos pratos serem veganos, O Tempero X não leva esse título. Ana explica: “a palavra veganismo tem um preconceito, você fala essa palavra aqui na quebrada e as pessoas não se interessam tanto”.

Para a graduanda de nutrição da UFSC, Sarah Nichele, um dos fatores que torna o veganismo um movimento elitizado e contribui para o preconceito citado por Ana, é a falta de soberania alimentar no Brasil. “É uma discussão em que ainda estamos falando sobre o poder de escolha, de fazer, de preparar, que demanda tempo e energia, e também escolher o que coloca no prato. Num Brasil em que 19 milhões de pessoas passam fome, abordar o veganismo nesse contexto não vai fazer sentido”. Seu estudo é focado em dietas alternativas, com destaque para a alimentação à base de plantas.

Nutrição à base de plantas

O aspecto da vida mais diretamente afetado na decisão de se tornar vegano é a alimentação. Esta é, com frequência, e de maneira equivocada, associada ao consumo de industrializados, o que contribui para uma visão elitizada do movimento. “Se você pensar que vai ter que substituir em uma base um por um – do que você come de produtos derivados de animais por produtos derivados de vegetais – e se nesse um por um, a sua substituição é por produtos industrializados, vai sair muito caro”, Fábia explica. De acordo com o Canal Rural, o preço de um litro de leite de vaca custa entre R$2,50 e R$5,00 no Brasil. Em uma substituição “um por um”, um litro de leite vegetal pode chegar a custar R$20,00, quatro vezes mais que uma opção não vegana, o que se torna insustentável financeiramente para diversas pessoas.

“Mas a questão é que não precisa fazer essa substituição, dá para fazer de uma maneira muito simplificada, com coisas que tem em casa, coisas da feira, gastando pouco”, completa Fábia. Por propor uma alimentação à base de plantas e mais natural, o veganismo popular refuta o consumo de produtos de custo elevado, que acarretam no enriquecimento de multinacionais – estas que, por sua vez, em muito contribuem para a exploração humana e de outros animais.

O desafio de montar refeições que não utilizem produtos de origem animal é superado com a criatividade, segundo Félix Sebastian, dono do restaurante Mandarina Cozinha Antiespecista, de Florianópolis. Localizado no centro da cidade, o restaurante gerenciado por Félix foi fundado em 2017, com o propósito de tornar o consumo consciente e sem exploração acessível aos moradores.  “Se a pessoa tem dinheiro, pode pagar. Se ela não tiver, não precisa pagar. São clientes, seres humanos, não queremos que passem fome”, explica ele.

Antes da pandemia, estima-se que entre 1.200 e 1.500 pessoas frequentavam o estabelecimento semanalmente. Para alimentar tanta gente, com um buffet livre a R$10,00, o preço dos produtos é fator decisivo na montagem dos cardápios. “Tentamos explorar tudo: desde tubérculos, verduras, grãos, tudo com base no preço”, ele explica,“se a berinjela está muito cara, não pegamos. Se algo está barato, compramos bastante”. Vindo de uma situação econômica pouco privilegiada, Félix destaca que não há intenções suas de gerar lucro se este vier da exploração. Para ele, é necessário apenas o suficiente para sustentar sua família.

Da mesma forma que o restaurante Mandarina usa a criatividade e um orçamento limitado para montar seus pratos, é possível transferir esse esforço para a esfera individual. Foi com o objetivo de auxiliar quem quisesse aderir a uma dieta à base de plantas que o projeto de extensão ambulatorial Nutri na Íntegra, do departamento de nutrição da UFSC, foi criado. Idealizado por Sarah Nichele e coordenado pela professora Brunna Boaventura, o serviço de atendimento gratuito tem o plano de, ao longo de 12 encontros remotos semanais, montar uma dieta que não inclua produtos de origem animal.

“O intuito é mudar a vida dessa pessoa – na medida do possível, no papel de uma nutricionista – para que ela consiga mudar o comportamento dela efetivamente, e se educar o suficiente para ter autonomia para a vida”, explica a estudante de nutrição, que complementa: “não é só tirar a carne. É tirar a carne, mas substituir os nutrientes para não faltar nada”. O programa tem como característica a flexibilidade, para ajustar o plano alimentar à realidade de cada paciente. Este serviço, realizado remotamente, esteve disponível para todas as regiões, mas se encontra com as inscrições para participação encerradas no momento.

Questão ambiental

Seguindo a lógica de consumo com a menor exploração possível, o veganismo popular também pauta os danos ambientais como fruto do consumo inconsequente. Alterações na regularidade de chuvas, queimadas e secas históricas são exemplos da realidade das mudanças climáticas. De acordo com o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), o aquecimento global já é irreversível, e até o ano de 2030, a temperatura global terá subido 1,5°C, o que acarretará em uma frequência ainda maior de eventos climáticos extremos.

Sarah conta que, analisando os fatores relacionados à exploração de animais e do meio ambiente, chegou a um ponto em que se tornar vegana era a escolha óbvia, diante de suas possibilidades. “A principal motivação é ter a noção de que o Cerrado e a Amazônia sofrem e o quanto isso impacta no Brasil inteiro. A América Latina é o maior emissor de gases de efeito estufa do mundo, derivado principalmente da forma como a gente cria animais de corte, principalmente em regime extensivo”

Imagem aérea de um grande campo agrícola ao lado de uma floresta, o cerrado
Limite entre o cerrado e campos agrícolas em Formosa do Rio Preto, Bahia – AFP/Arquivos

Em 2019, 73% das emissões de gases de efeito estufa brasileiras foram provenientes da agropecuária, de acordo com o Sistema de Estimativas de Emissões de Gases de Efeito Estufa (SEEG), incorporado ao Observatório do Clima. Neste ano, o país foi responsável pela emissão de 2,17 bilhões de toneladas de dióxido de carbono na atmosfera, o que o colocou no sexto lugar entre os maiores poluidores no mundo.

O grande responsável pelas emissões, de acordo com Virgínia, é o modelo econômico agroexportador, baseado na cultura extensiva de artigos agrícolas. Sua transição de hábitos se deu, em grande parte, por conta da questão ambiental. “O Brasil é uma grande plantação de soja, que serve para alimentarmos gado e para os europeus comerem. Ao mesmo tempo, temos uma população que passa fome”, relata. Desde o início da pandemia, Virgínia usa seu perfil no instagram, @veeganadoabacate, para propagar informações sobre o veganismo popular, em especial sobre as lutas políticas desse movimento.

“Temos que questionar o latifúndio, lutar pela reforma agrária, estar junto com os trabalhadores. Porque é só com a libertação de todo mundo que teremos a libertação dos animais”, acrescenta. Ana reforça que a melhor saída é pela agricultura em pequena escala, praticada por núcleos familiares. “Onde compramos nossa comida é muito importante. É pregado pelo veganismo popular comprar de pequenos produtores, apoiar a agricultura familiar, que é muito presente em Santa Catarina.”

Onde compramos nossa comida é muito importante. É pregado pelo veganismo popular comprar de pequenos produtores, apoiar a agricultura familiar, que é muito presente em Santa Catarina.

Ana Carolina

Tanto Virgínia quanto Fábia optam por realizar compras com produtores locais e frequentar feiras, opções que costumam apresentar menores custos e auxiliam na renda direta de pessoas da cidade. Virgínia explica, “Eu não vou parar o desmatamento na Amazônia sendo vegana, mas posso ajudar a garantir o dinheiro no final do mês do pequeno agricultor, que está ali na feira todo sábado. Não simplesmente ir ao mercado comprar um Futuro Burger, que se diz vegano e revolucionário, mas que não tem nada disso”.

Reportagem produzida para a disciplina Linguagem e Texto Jornalístico sob orientação da Profa. Dra Melina de la Barrera Ayres, em agosto de 2021.

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