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Museu do Brinquedo Reciclável está abandonado após morte de sua responsável

Texto e fotos: Natália Porto (nataliaporto.jor@gmail.com)

portaNa última porta do corredor do Carandiru – edifício construído para ser moradia provisória no bairro Monte Cristo e que, segundo a prefeitura, será revitalizado e utilizado para atender diversos projetos -, uma placa anuncia aos visitantes: “Museu do Brinquedo Reciclável”. Assim como as letras “EL”, a presença constante por trás daquela porta também não se faz mais presente. O museu, que era o coração de Dona Lídia, passou primeiro dia das crianças trancado, sem a sua protetora. E o coração de Dona Lídia era tão grande que abrigava gente real e inanimada, desde as bonecas, colecionadas com extremo carinho a partir do lixo e de doações, até suas cinco filhas e seu companheiro Hermes. Esse coração tão grande, de 59 anos, não aguentou a última internação hospitalar e parou no dia 13 de abril.

É Seu Hermes que destranca a porta do museu para minha entrada, mas que prefere permanecer no corredor. Antes, encostado na parede, olhando para a grade que fechava o Carandiru, Hermes pouco falou. ‘Essa aqui era a casa dela. Ela estava sempre aqui. Deixava tudo limpinho. As filhas dela trabalham e eu estou pedindo a minha aposentadoria. Só consigo varrer de vez em quando. Só isso. Aí, o museu está assim”, comentou, com o mesmo olhar parado.

Dona Lídia, ou como a identidade mostrava, Lídia Almeida de Oliveira, fez de um quarto no prédio, com o mesmo nome do presídio mais famoso do Brasil, um espaço democrático, onde todos pudessem brincar, pelo menos por um momento. Começou com uma boneca coletada do lixo. Era a primeira vez que tinha a chance de segurar uma. Depois dessa vieram outras e mais outras. Algumas por doação, mas muitas que tinham como destino o lixo, proibidas de participar das brincadeiras de outras crianças.

No livro “Mulheres da Chico”, registro da vida de seis mulheres que moram na região do Monte Cristo, ela comentou sobre a sua coleção de bonecas: “Pra mim, hoje tenho mais de mil bonecas. Eu cuido delas com tanto carinho, lavo, arrumo, ajeito as roupinhas. Essa que é a primeira, coitadinha, faz frio e ela tá de maiô. Qualquer dia arrumo uma roupinha pra ela”. E, acredite, Dona Lídia arrumava mesmo. Todas tinham que ser trocadas de acordo com o tempo e nenhuma podia passar frio ou calor. O que seria um pecado para a guardiã do museu do brinquedo.

Natural de Caçador, Santa Catarina, Lídia vivia, como dizia, igual a “bugre do mato”. Sem roupas ou calçados, morava com os pais e irmãos e passava dificuldade. Sua mãe era sua costureira e tingia os sacos de mantimentos que serviam de tecido para as vestimentas. “Eram aquelas roupas bem antigas feitas de saco, daquelas bolsas brancas. Daí a mãe pintava. Sabe aquela raiz de São João, meio amarelada, meio arroxeada? Então, a mãe fazia roupa pra gente daquilo ali. O pai comprava as bolsas no mercado e a mãe tingia e costurava as roupas”, falou. E se alguém ousasse visitar seus pais, ela e os irmãos fugiam para o mato e esperavam até irem embora. A “bugre” cresceu, perdeu o pai e começou a ajudar a mãe no trabalho da roça aos 12 anos de idade.

Aos 14 anos, Lídia começou a trabalhar em um bar e cuidar da casa dos donos do estabelecimento. Foi com esta idade que foi humilhada pela primeira vez. “A minha mãe disse: você vai trabalhar, os patrões vão pagar bem, vão te dar calçado, roupa, porque a gente não pode dar. Mas, chegando lá, me davam só os restos do que comiam”. Lídia apanhou com vara, foi queimada por ferro em brasa por não saber passar roupa do jeito que a patroa gostava, tinha a cicatriz nas pernas para comprovar.

O que não pode fazer na infância,ela fazia questão de aproveitar nos últimos anos naquele quarto. Quarto que continua exatamente do jeito que ela deixou, pronto para ser aproveitado pelas crianças de qualquer idade ou classe social.

Mas, quem entra no museu sente que falta algo ali. Algo parecido com alma, aquela de eterna criança, ou coração mesmo. Aquele que de tão grande deixou milhares de bonecas e vários moradores da Chico Mendes, como o Seu Hermes, sem proteção e carinho. Ele só precisa ser aberto de novo e servir ao propósito construído pela Dona Lídia: um espaço de brincadeiras, sorrisos e desejos.

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