Jéssica Borges (30), conta que já falava sobre o assunto nas redes sociais desde 2014, compartilhando vivências da maternidade de Ravi (8). Foto: Arquivo Pessoal
Reportagens

Mulheres autistas contam suas trajetórias após diagnóstico tardio

Mulheres autistas encontram respostas para comportamentos que as acompanharam a vida toda, graças ao diagnóstico na fase adulta

Por Aléxia Elias e Manuella Wallerius

“Eu gosto de dizer que depois que você tem um diagnóstico, é como se você ganhasse uma máquina do tempo, como se você pudesse acessar vários momentos da sua vida e entender o porquê das suas reações naquele momento”. É assim que Jéssica Borges, de 30 anos, autista e educadora inclusiva, define seu sentimento em relação ao laudo que recebeu há dois anos.

Jéssica é uma dentre diversas mulheres que foram diagnosticadas com autismo apenas na fase adulta. Ainda na adolescência, se sentindo deslocada da sociedade, buscou ajuda profissional e recebeu o diagnóstico de Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH). No entanto, anos se passaram e o sentimento de inadequação permaneceu. Ela tinha reações intensas às situações cotidianas e dificuldades com relações interpessoais, especialmente na escola. Foi somente há seis anos, quando seu filho Ravi foi diagnosticado com Transtorno do Espectro Autista (TEA), que ela começou a buscar informações e se identificar com alguns sinais.

A repetição de palavras (ecolalia), a rigidez cognitiva com padrões de repetição, incluindo a necessidade de rotina, os prejuízos na comunicação e de interação social, a hipersensibilidade sensorial, foram algumas das características que levaram Jéssica a procurar novamente por especialistas. De acordo com a educadora, que também é ex-diretora do Instituto Lagarta Vira Pupa – voltado para o acolhimento de pessoas com deficiências e suas famílias -, esse processo pode ser complicado, pois há um entendimento errôneo de que as mulheres não são acometidas pelo TEA. “Não é fácil achar um profissional que avalie de forma criteriosa as mulheres, até porque os testes [de avaliação] foram feitos com base nos comportamentos masculinos”, explica. 

Segundo o estudo Finding the True Number of Females with Autistic Spectrum Disorder by Estimating the Biases in Initial Recognition and Clinical Diagnosis, publicado no Multidisciplinary Digital Publishing Institute (MDPI), acreditava-se até recentemente que existia uma proporção de quatro homens autistas para uma mulher. No entanto, o estudo americano, que foi realizado com 1.711 crianças, mostrou que a verdadeira proporção seria muito mais igualitária, sendo três mulheres para cada quatro homens. Apesar disso, o que acontece é que cerca de 80% das mulheres ainda não são diagnosticadas antes dos 18 anos, o que, segundo o autor da pesquisa, Robert McCrossin, pode causar danos inimagináveis na saúde mental das jovens. 

A dificuldade de diagnóstico é, de acordo com a doutora e neuropsicóloga Rachel Schlindwein Zanini, um processo histórico, em que as mulheres culturalmente aprendem a se portar de uma forma que acaba mascarando os sintomas desde a infância. “A gente sabe que na realidade os nossos papéis são moldados […] Então se tu pensar que desde criança você, menina, aprende a lavar uma loucinha, varrer a casa, cuidar do filho… isso tudo gera autonomia. E também tudo acaba melhorando a questão de ser cordata, de socializar de forma agradável, porque elas aprendem desde cedo a não ser invasivas”.

Esse processo de mascarar sintomas, também conhecido como masking, soa extremamente familiar para mulheres como Jéssica. Para ela o masking funciona, muitas vezes, como um mecanismo de defesa, motivado pelo medo que a pessoa com TEA possui de ser invalidada, silenciada e até mesmo infantilizada, sendo vista como uma pessoa incapaz de viver como outras pessoas neurotípicas, trabalhando e estudando.  “Você tem que estar fingindo ser alguém que você não é para continuar nos meios sociais e isso tem um preço, tanto é que a taxa de suicídio na nossa comunidade é muito alta, por você estar sempre fingindo ser quem não é, por se sentir inadequado”, afirma Jéssica, ao refletir sobre as consequências do masking. A Dra. Rachel, explica que aprendizados como cuidar e limpar o ambiente familiar, são impostos como brincadeiras para as meninas que, se observadas com atenção, podem demonstrar sinais que não devem ser ignorados.

Violet Shibuta, mulher autista de 31 anos e influencer que se dedica a debater sobre o assunto nas redes sociais, conta que, em sua infância, as brincadeiras que são os momentos mais divertidos do dia de uma criança, onde há interação e construção de vínculos de amizade, eram diferentes. Ela, que só recebeu o diagnóstico de TEA na fase adulta, lembra que sempre gostou de brincar com bonecas, mas o seu foco de interesse era construir a casinha, montando o quartinho, a cozinha, a sala. Entretanto, a brincadeira com a boneca em si não acontecia. Para ela, após a montagem dos cômodos, não havia mais graça em continuar e, assim, partia para outra atividade. Quando brincava com outras colegas, tentava reproduzir os seus comportamentos e maneiras de se portar. Outros sinais se refletiam nas atividades cotidianas, como a preferência de se encontrar com os colegas em sua própria casa, justificada pela timidez intensa. Manter laços e conexões com os amigos era difícil, impactando diretamente na sua sociabilidade. Na escola, não era diferente. A cor de uma cartolina, por exemplo, podia se tornar um grande problema se a professora a especificasse, pois Violet interpretava a orientação de maneira literal, achando que nenhuma outra cor seria aceita para a atividade. “Enquanto eu não ouvisse da professora que poderia ser cartolina rosa, eu não ficava tranquila”, conta. Ela diz que nunca parou para refletir sobre essas caraterísticas e que só as percebeu já adulta, conversando com seus pais sobre sua infância.

Violet Shibuta (31) e sua família possuem um canal nas redes sociais chamado “Family On Board”, onde compartilham suas experiências viajando o mundo pela conscientização do autismo. Foto: Reprodução/Instagram

O TEA se manifesta de forma distinta em homens e mulheres, portanto, a subnotificação de mulheres autistas não se dá somente pelo masking. De acordo com o estudo Behavioral and Cognitive Characteristics of Females and Males With Autism in the Simons Simplex Collection, publicado no National Center for Biotechnology Information, mulheres autistas têm melhores habilidades de comunicação e são melhores em externalizar problemas, enquanto os homens possuem níveis maiores de interesses restritos e maior habilidade cognitiva. O estudo aponta, ainda, que a identificação de mulheres com TEA está melhorando conforme a população e os profissionais de atenção primária à saúde adquirem conhecimento sobre autismo.

Este é o caso de Luiza, de dez anos, que recebeu o diagnóstico quando tinha dois anos. Uma professora da escola notou que a menina tinha algumas diferenças comportamentais, como não brincar na roda com os amigos e não demonstrar interesse pelas atividades, por exemplo. De acordo com sua mãe, a advogada Viviane Röwer, o processo de avaliação durou dois meses até que o laudo de TEA saísse. A partir desse dia, Luiza começou um processo intenso de cerca de três anos em terapia ocupacional, fonoaudióloga, psicóloga e fisioterapia. Todo esse investimento de tempo, energia e recursos financeiros, de acordo com Viviane, valeu a pena. “A Luiza melhorou muito, a gente não pode parar, quanto antes tiver uma intervenção é melhor para criança e é melhor para família, até porque a gente passa a entender um pouco mais”.

Viviane relata que Luiza (10) sabe que é autista e que ela não é tratada de maneira diferenciada, mas que há uma compreensão acerca das suas limitações. Foto: Arquivo Pessoal

Contudo, essa necessidade de investir tempo e dinheiro é um fator que pode ser um obstáculo para a identificação e diagnóstico de crianças que pertencem a famílias que não possuem condições financeiras. É o que diz o estudo Relationships Between Household Income and Functional Independent Behavior for Children With Autism, publicado no National Center for Biotechnology Information, que afirma que crianças de famílias de baixa renda são menos propensas a serem diagnosticadas com TEA, e o diagnóstico, quando acontece, geralmente é tardio. Essa pesquisa, que foi realizada com 231 cuidadores de crianças autistas de dois a 12 anos, mostrou que há diferenças significativas de comportamento e independência identificadas em crianças de categorias de renda alta e baixa, principalmente em relação ao controle dos sintomas, idade de diagnóstico e acesso a serviços de intervenção.

A intervenção precoce, como ocorreu no caso de Luiza, é essencial para o desenvolvimento da pessoa com autismo. De acordo com a fonoaudióloga especialista em autismo, Tatiana Malavazzi, atualmente já é possível identificar características até mesmo em bebês, embora elas variem de acordo com a faixa etária e o ambiente de desenvolvimento da criança. “As características de uma criança de cinco anos vão ser diferentes das crianças de um ano, que vão ser diferentes de um pré-adolescente, que vão ser diferentes das características do adulto”.

Viviane, mãe de Luiza, alerta aos pais sobre a importância de prestar atenção no comportamento de seus filhos, e não ignorar quaisquer sinais. “A pessoa pode sentir tristeza, e ninguém quer que o filho tenha diagnóstico de nada, porque é um mundo de incertezas e de medo, mas não pode ficar parado. Essas coisas têm que ser tudo para ontem, porque um dia já faz diferença”.

É necessário, no entanto, lembrar que o TEA não é uma condição da infância, e sim um transtorno do neurodesenvolvimento e, portanto, ele acompanhará a pessoa ao longo da vida. Embora não tenha cura, os tratamentos feitos com profissionais adequados podem ajudar a atenuar algumas dificuldades, e esse é um dos principais benefícios de se buscar uma avaliação, mesmo na fase adulta.  

Diferente de Jéssica, a educadora que começou a desconfiar da possibilidade de seu diagnóstico devido a condição de seu filho, a influencer Violet só foi pensar que tudo o que sentia poderia ser característica de TEA após uma conversa com uma amiga. Apesar do diagnóstico de ambas ter sido considerado tardio, ele não deixou de ser um diferencial. Para Violet, descobrir a explicação de suas atitudes e sentimentos foi um alívio. “Eu me sentia culpada de não gostar de ficar abraçando, ou de não ficar olhando nos olhos das pessoas. Então hoje em dia se eu não quero olhar, não vou olhar, hoje em dia se eu não quero abraçar, eu vou falar: ‘não me sinto confortável’. Me deu mais voz no sentido de eu poder explicar para as pessoas que convivem comigo o que eu sinto”. Já para Jéssica, para além do bem-estar, o diagnóstico é o diferencial para viver com dignidade. “Acho que todo mundo tem o direito de saber quem se é”.

*** Reportagem produzida para a disciplina Linguagem e Texto Jornalístico III, ministrada pela Profa. Dra. Melina de la Barrera Ayres, em 2022.1.

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