O chatbot está em sua quarta versão e é fenômeno na Internet. Foto: Lia Capella
Reportagens

Essa reportagem (ainda) não foi escrita inteiramente pelo Chat GPT

A popularização dessa Inteligência Artificial pode trazer consequências para os profissionais de texto?

Por Clara Spessatto, Júlia Matos e Lia Capella

Nos últimos anos, a Inteligência Artificial (IA) tem se consolidado como uma ferramenta importante em diversas áreas profissionais, e a produção de texto não é exceção. Nesse contexto, o Chat GPT, uma das mais avançadas tecnologias de processamento de linguagem natural, tem chamado a atenção de escritores, jornalistas, publicitários e outros profissionais que trabalham com a palavra escrita.

“Escreva uma introdução para uma reportagem sobre os efeitos do uso do Chat GPT nas profissões de texto”. Sob esse comando, a Inteligência Artificial (IA) criada pela OpenAI escreveu o parágrafo inicial desta reportagem. A ferramenta que foi lançada em novembro de 2022 já ultrapassa a marca de 100 milhões de usuários e virou um fenômeno na Internet.

A IA responde a questão do usuário com um texto gerado em segundos. Foto: Lia Capella

O Chat GPT é um large language model, ou seja, um modelo de linguagem com alta capacidade de geração de textos. Ele consiste em uma espécie de bate-papo on-line, no qual o usuário pode “conversar” com a plataforma. Ao fazer perguntas ou dar comandos, o assistente virtual processa e aprende dados disponíveis na rede de Internet, gerando textos de respostas.

“O Chat GPT é uma fronteira sendo rompida dentro da Ciência”, afirma Mauri Ferrandin, professor engenheiro da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) com especialização em inteligência artificial. Segundo ele, até agora não havia nenhum modelo que apresentasse essa capacidade.

Com a rápida adesão da plataforma pelo mundo e a grande capacidade de geração de textos de assuntos diversos, muitas pessoas têm se perguntado: “será que minha profissão está em risco?” Essa inquietação quanto a novas tecnologias retoma um debate muito mais antigo do que o Chat GPT.

Marcio Carneiro, professor de comunicação na Universidade Federal do Maranhão (UFMA) e de tecnologia da inteligência digital na Pontifícia Universidade Católica (PUC), diz que ainda é cedo para determinar os impactos do Chat GPT nas profissões. A plataforma é muito recente para saber com exatidão quais funções humanas ela pode vir a substituir, segundo ele. O que já é plausível analisar nos poucos meses de uso da ferramenta, são as utilidades que podem ser – e já estão sendo – adotadas no dia a dia de profissionais como jornalistas. 

O professor faz um comparativo com a transição do uso restrito de jornais impressos para a possibilidade de publicações digitais. Ele diz que, nessa mudança, alguns profissionais perderam o emprego, enquanto outros se requalificaram e usaram a tecnologia a seu favor. Para Carneiro, a adoção de novas ferramentas como o Chat GPT segue a mesma lógica: “Acredito que o mercado vá querer trabalhar com pessoas que tenham conhecimento para lidar com essas ferramentas, obtendo através delas resultados mais assertivos”. Segundo ele, se aproximar das IAs e saber utilizar os comandos mais apropriados, ou prompt designs, será um diferencial entre os profissionais.

Apesar das facilidades que o dispositivo oferece, Carneiro reforça: “o Chat GPT, assim como a maioria das tecnologias de IA, é um ótimo assistente. Assistentes são muito bons porque te fazem ganhar tempo, mas, como é seu assistente, você não pode confiar 100% nele. É necessário revisar tudo que ele faz”.

A última versão do Chat GPT ainda possui algumas limitações que impedem que a tecnologia faça um trabalho integral e preciso. “Não vejo a curto prazo um robô fazendo entrevista e extraindo informações que ainda não foram replicadas na rede”, diz o professor. Com isso, especialmente em áreas que exigem um nível qualificado de informação como o jornalismo, ainda é necessário o trabalho humano.

A plataforma também tem sido explorada por outros ramos da comunicação. O copywriter da agência de publicidade Trends Mateus Cardoso acredita que o Chat GPT pode, às vezes, ajudar no trabalho, mas em maior parte não contribui. “No máximo consegui tirar boas ideias, às vezes nem isso. No texto publicitário, você tem que se comunicar com o público de uma forma emocional, para fazer rir ou despertar outra emoção. E o que o Chat GPT oferece de texto, por mais que tu dê os comandos específicos, sempre é muito frio”.

Entre seus colegas da área da publicidade, o uso de IA e seus impactos é bastante discutido, de acordo com Cardoso. Ele conta sobre um caso na Trends que um colega redator usou o Chat GPT para escrever uma legenda de um post no Instagram. “Ele copiou e colou o texto, cru mesmo. Foi mal visto lá na agência, porque apesar da ferramenta ser positiva no sentido de criar coisas novas, o texto que ela oferece é muito genérico e mecânico”, diz. 

Uma preocupação do copywriter é sobre a monetização do Chat GPT. A criadora da ferramenta, a OpenAI, é uma organização sem fins lucrativos. Cardoso se preocupa sobre a possibilidade dessa IA se tornar futuramente um mecanismo para grandes empresas faturarem, enquanto tiram emprego de outras pessoas.

Impasses éticos e legais

Para o professor de Jornalismo da UFSC e pesquisador do Observatório da Ética Jornalística (objETHOS) Rogério Christofoletti, a apropriação indevida de conteúdo, a opacidade das fontes e a difusão de desinformação são preocupações éticas quanto ao uso do Chat GPT. 

Essas questões estão, para além da esfera ética, na jurídica. A apropriação indevida do conteúdo de uma pessoa pode acarretar em crime, previsto no Artigo 184 do Código Penal. Apesar de ainda não existir no Brasil uma lei que proíba a desinformação, o Projeto de Lei das Fake News está tramitando no Congresso Nacional em tentativa de regular os conteúdos de plataformas digitais para combater as notícias falsas.

Com o marco legal da Inteligência Artificial, o Brasil definiu sua estratégia nacional para o uso da IA, fundamentado em valores democráticos e no respeito aos direitos humanos. Para Christofoletti, é necessário que o Parlamento esteja alinhado com a sociedade no desenvolvimento desse projeto de lei. “Porque esses aparatos tendem a ser tão mais capazes do que nós que precisamos saber deles. Quanto mais autonomia do sistema, menos previsibilidade. A tomada de decisão sem consulta humana pode acarretar em problemas”, diz. 

A discussão sobre o uso do Chat GPT não pode se resumir na dicotomia de tecnofilia VS tecnofobia, adverte Christofoletti.“ Ser a favor ou contra não vai impedir que os sistemas sejam desenvolvidos. Agora, ao centralizar a discussão nas bases para desenvolvimento desses sistemas, a gente começa a ter avanços importantes”.

 

Aprendizado ou autoengano?

A virada do século XXI trouxe uma revolução na difusão do conhecimento. Até meados da década de 70, as grandes enciclopédias eram uma das poucas fontes de informação. Com a introdução das novas tecnologias, a invenção dos computadores e da Internet, veio a criação de uma nova ferramenta de busca que facilitou o acesso ao conhecimento: o Google.

Parecia muito, mas ainda havia mais pela frente. Nos últimos anos, o desenvolvimento de técnicas de big data e avanços de pesquisa de ciência computacional permitiram que as Inteligências Artificiais alcançassem novos patamares de otimização. Com o Chat GPT, em questão de segundos a questão do usuário é respondida. “O aluno não precisa mais nem decidir o que vai copiar”, diz a professora de educação básica, Fernanda Lima Jardim. 

Fernanda leciona em uma escola da rede estadual, em São José, na Grande Florianópolis, e está cada vez mais preocupada com a disseminação da plataforma. Apesar de não ter usado o Chat GPT, ao ler a respeito e entender seu funcionamento, está com receio de que o plágio se torne cada vez mais frequente e difícil de identificar. Segundo a educadora, diferente do Google, a nova tecnologia, muitas vezes, não permite a pesquisa, uma vez que já traz o conteúdo completo, pronto para ser copiado.

De acordo com Fernanda, ao usar textos prontos gerados pela IA, os alunos não estarão aprendendo, mas, sim, se autoenganando. “Muitos alunos vão se formar sem saber escrever direito”, complementa. Com isso, a solução encontrada por ela é disponibilizar tempo em aula e evitar passar atividades de escrita para casa. “O que acontece é que as pessoas só pensam no agora, poucas viriam e diriam que a cópia é autoengano”, explica.

Apesar da crítica, a professora acredita que a ferramenta pode ajudar o estudante, desde que utilizada da forma correta. Mas essa nunca substituirá algumas habilidades humanas. “Para mim, o texto tem que ter autoria e a máquina nunca vai substituir a parte humanizada da escrita”, afirma.

 

“Por que razão a gente daria para as máquinas o poder de produzir o que há de melhor em nós?”

A necessidade de tradução das línguas é tão antiga quanto o desejo humano de conhecer outras culturas e estabelecer relações comerciais ao redor do globo. Com isso, surge o papel do tradutor. E nos dias atuais, com um clique é possível alterar a língua de um texto, através de ferramentas disponíveis na internet, que vêm competindo com a profissão apesar de não serem tão bons quanto os profissionais. 

Por mais que o trabalho possa ser feito por máquinas, há dispositivos legais estabelecendo limites. A Lei 9.610/98 (Lei dos Direitos Autorais – LDA) garante autoria, apenas, para a produção humana. Isso se dá porque o requisito da autoria é a originalidade. “A máquina não é criativa, ela apenas repete o que está no seu banco de dados”, afirma Pablo Cardellino Soto, tradutor e professor adjunto da Universidade de Brasília (Unb).

Para o professor, não é uma questão de as máquinas conseguirem ou não traduzir próximo à capacidade humana, mas, sim, quando. Com isso, cabe aos profissionais em formação na área aprenderem a revisar e, também, editar traduções feitas pelas máquinas. “A tradução com apoio de tecnologia é irreversível, mas é necessário ensinar os alunos a serem bons pós-editores”, explica Soto.

O Chat GPT, assim como outras Inteligências Artificiais, pode se tornar um aliado do mercado de trabalho, de acordo com Carneiro. “Quando a pessoa implementa essa tecnologia na rotina, ela consegue um ganho de produtividade”, diz. Porém, para garantir uma correta inserção no mercado, o professor de comunicação pensa ser necessário a criação de políticas públicas visando a empregabilidade, estudos mais aprofundados sobre os impactos desse dispositivo e sua implementação no sistema educacional. Além desses fatores, é importante a criação de ferramentas que verifiquem o conteúdo exposto, evitando perpetuar discursos de ódio. “Não é um problema de tecnologia, é um problema humano”, conclui.

Para garantir a sobrevivência das profissões de texto, é fundamental que as máquinas estejam a serviço do homem, e não atribuir a elas o papel de substitutas, indica Soto. “Por que razão a gente daria para as máquinas o poder de produzir o que há de melhor em nós, que é produção de conhecimento, arte, literatura, a produção da própria humanidade?”, questiona o tradutor.

 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.