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“Escrevo como uma atriz faria”, conta Aline Bei sobre seus livros

Em entrevista, a escritora fala sobre as origens no teatro e os processos criativos de ‘O peso do Pássaro Morto’ e ‘A pequena Coreografia do Adeus’

Por Erika Artmann

Palavras são importantes na contação de histórias, mas também podem ser usadas para esconder assuntos essenciais. O que não está ali, às claras no papel, às vezes torna-se o conteúdo principal. Para narrar suas histórias, Aline Bei escolheu esconder as palavras. Com frases curtas, uso cuidadoso dos sinais e das pontuações, além da habilidade para decidir os muitos espaços em branco da página, a escritora emociona quem decide se aventurar por suas criações.

Vinda do teatro, Aline Bei conta se apropriar das experiências no palco enquanto oferece sua devoção ao papel. “Imagino sempre que estamos nessa caixa preta do teatro contando uma história que, na verdade, o que sobe, o que fica na superfície, é muito menos importante do que aquilo que está submerso”. Durante a escrita, Aline se apresenta não apenas como autora, mas também como atriz, fazendo com que ela e o texto encontrem um ritmo conjunto próprio.

A autora concedeu esta entrevista, que deve interessar a quem, assim como eu, é curioso para conhecer as origens do estilo narrativo em que as palavras dão espaço ao silêncio. Pessoas que já se emocionaram com as sutilezas escritas no livro ‘O Peso do Pássaro Morto’ ou se envolveram na dança proposta por ‘Pequena Coreografia do Adeus’ também podem gostar. Além disso, será útil para quem ainda planeja começar a aventura. Deixo meus sinceros votos de boa leitura.

Como surgiu essa ideia de fazer um romance em versos?

Essa ideia vem muito mais de uma investigação que se iniciou bem antes do livro. Que é uma investigação de página mesmo, de espaço e também de voz. Da minha voz narrativa. Eu venho do teatro então eu acho que a voz e o espaço são duas coisas elementares dentro da construção cênica e quando eu migrei para as letras não me desvinculei totalmente – ou quase nada – do meu repertório no teatro.

Eu escrevo como uma atriz faria, muito menos do que como uma escritora faria. E fico em busca desse posicionamento do espaço para tentar fazer a minha história ecoar de uma forma teatral, acho que essa é a palavra. Imagino sempre que estamos nessa caixa preta do teatro contando uma história que, na verdade, o que sobe, o que fica na superfície, é muito menos importante do que aquilo que está submerso. É como se as palavras escondessem uma coisa que é essencial. Elas estão contanto, elas têm um ritmo, mas a história está por baixo dela, está por dentro dela, na carne. Acho que isso tudo faz parte da minha investigação. 

Quando eu decido escrever uma história mais longa, que é como eu costumo chamar, isso foi se instalando também nos livros. Sinto que é uma pesquisa de uma vida. É o que vou me debruçar como artista na página por todo o meu percurso de escrita. Essa relação do espaço, da voz, da palavra e do silêncio. Acho que faz parte mesmo do meu projeto como artista.

Essa forma é algo interno, que vem de dentro, ou é algo planejado?

Acho que na verdade é uma angústia, então ela vem de dentro, é um sentimento de não dar conta de uma história. Um sentimento de limitação que, a partir dele, há um silêncio, e esse silêncio vai permeando tudo. Acho que vem de dentro, não tem um plano. Ao mesmo tempo, quando eu assumo isso, também começo a investigar de uma forma mais prática: já desejo e quero que a minha história se instale a partir desse silêncio, desses espaços. Nasce como uma angústia e depois que é, de alguma forma, acolhido por mim, se transforma em algo mais prático, uma investigação de linguagem.

Você usa bastante recursos gráficos nas suas produções. Como eles surgem?

Eles são espontâneos porque eu também acho que cada texto vai me mostrando o caminho que ele deseja: de linguagem, signos e sinais. Eu vou usando esses recursos. Então, o que eu uso na Pequena não é exatamente o que eu uso no Pássaro. Apesar de ser uma investigação irmanada e um livro vai levando ao outro, mas acho que cada história tem o seu próprio ritmo. É a partir do ritmo que se estabelece essas escolhas de sinais. 

No caso da pequena, eu sinto que tem um uso menos tímido do parênteses porque, pra mim, os parênteses talvez tenham sido a primeira coisa que pensei como escritora. Vem dessa leitura de peças, de dramaturgia, onde a rubrica tinha um papel que me emocionava dentro da peça por escrito, que é a de voz do autor. Que está conversando, inclusive, não só com os atores, mas com o diretor. O autor dando um recado narrativo de como ele gostaria – e isso pode ser absolutamente desobedecido – mas como ele gostaria ou imaginou, em um primeiro momento, que aquela peça seria encenada. Essa comunicação de vozes, em tempo presente, futuro e passado, é muito interessante. E guardar essa voz do além num recurso aberto e ao mesmo tempo fechado que é o parênteses, e fica assim: “()”. Aberto e fechado. É muito interessante e eu fui incorporando tudo isso dentro das minhas possibilidades narrativas.

Quais são os maiores desafios que você sente ao escrever nesse formato?

Preservar a sutileza, acho que isso é o mais importante. Como a minha linguagem é muito crua, uso muito verbo e as minhas frases terminam rápido, fico sempre cuidando das sutilezas das coisas. Não chegar muito rápido onde quero chegar e nem acender demais a luz no que eu estou escrevendo. Preservar as sombras e sutilezas das coisas. Acho que este é o maior desafio.

O ‘Peso do Pássaro Morto’ é seu livro de estréia e já foi premiado, com repercussão nacional. Quero saber como era a sua relação com a escrita antes dele.

A minha relação com a escrita se transforma, no sentido de que a gente se transforma conforme a gente vai envelhecendo, mas ela tem um ponto fixo que é a minha paixão por ela. Sinto que eu preservei, durante esses anos de escrita, uma pureza em relação ao processo que eu tento manter, mesmo sendo uma autora publicada já há alguns anos. 

São coisas diferentes porque eu escrevia e publicava muito na internet, mas de alguma forma eu só acessava uma bolha de leitores que também era conhecida minha. A gente trocava textos então eram escritores também, ou artistas. Eu me comunicava com essa bolha e quando a gente publica um livro, nunca sabe aonde ele vai chegar. Porque o livro tem uma força própria, ele tem os seus próprios pés, mesmo que a gente vá conduzindo ele pelos lugares.

O Pássaro atingiu bastante leitores. A Pequena, meu segundo livro, também. Então eles vão encontrando caminhos possíveis que vão me levando e eu vou levando a história para algum lugar inesperado. Então, tem isso, mas eu acho que preservar o processo é muito importante. O artista e o escritor, acho que ele se faz justamente nesse momento de imersão numa história, seja ela mais curta ou mais longa. Essa pesquisa que eu faço, essa devoção que tenho, espero que nunca mude. Por mais que eu vá amadurecendo, envelhecendo, perdendo e ganhando coisas. Tento muito conservar essa pureza diante do processo.

O que você diria para quem planeja começar a ler seus livros?

Eu diria muito obrigada, caso eles tenham esse interesse, desejo de começar. Acho que essa troca é muito bonita e o livro se faz justamente nessa dança com o outro. Então, querer se aproximar de um livro já é uma espécie de leitura que se inicia: a gente interage com a capa, com o que a gente espera da história ou projeta ali, ou o que a gente já ouviu a respeito da história. E tudo isso é leitura, e vai influenciar a nossa leitura. Os outros livros que a gente leu recentemente ou há muito tempo, e que nos marcou, vão dialogar com aquela leitura. Então, eu fico muito grata caso alguém queira ler, se aproximar da história a partir desse nosso encontro, e desejo uma boa imersão.

É bastante clara a ligação de seus livros com a dança, com os ritmos. Como funciona para trazer o ritmo para a página?

Acho que cada história tem um ritmo próprio. Tenho pensado muito sobre ritmo porque eu acho que é, de fato, nesse lugar que a história se constrói. Não é exatamente nas palavras que a gente escolhe e que irão ocupar aquela página, mas muito mais um ritmo interno do texto, uma cadência do texto que vai aumentando e diminuindo, produzindo também ondas e efeitos a partir daquilo. 

Mas eu sinto que, a própria história, em um momento das versões que você vai escrevendo de um livro, ela vai tomando as rédeas da coisa. Acho que isso é o ritmo. Ela vai quase que se escrevendo por ela, mas é muito trabalho até chegar nesse momento. É quando a história mesmo vai comandando o espaço e decidindo qual ritmo ela vai ter. E esse é o ritmo mais verdadeiro. Encontrar a pulsação da história. Acho que a pontuação tem um papel importante. Claro que a cadência do texto, essa geografia na página, também tem uma espécie de convocação de corpo e de ritmo.

No processo da pequena, que teve uma aproximação com a dança de fato, não só pelo tema que está no livro, mas também pelo jeito que eu pensei em ocupar a página, estudei muito a Pina Bausch, uma coreógrafa alemã que eu amo e tem um trabalho muito maravilhoso. Eu fiquei carregada pelas imagens dela. Então, me ajudou a compor o ritmo da Pequena. As músicas também, porque eu trabalho escutando música e acho que isso também vai ditando alguma coisa interna. Vai reverberando e o texto incorpora os ruídos externos e tudo isso ajuda a compor. 

Agora, um escritor que deseja encontrar o ritmo acho que a melhor coisa a se fazer é escutar música, escutar o mundo e escutar o próprio texto. Acho que esse é o caminho.

Como você vê essa narrativa em versos na literatura contemporânea? Ela está ganhando espaço?

No meu caso, eu não vejo como uma escrita em versos. Vejo como uma respiração própria do meu texto. Uma espécie de fragmentação, uma escrita a partir do silêncio e do espaço. Mas, algumas pessoas escrevem com essa ideia do verso e da narrativa, e acho que é algo que interessa à página. Apesar de eu achar que tem pouca investigação nesse sentido. Eu não acho que tem tantas escritoras e escritores trabalhando nessa região do verso com a prosa. Porque é de fato uma harmonia difícil de se conquistar. Uma escritora que eu admiro muito e faz isso muito bem é a Annie Casson, que tem esse trabalho de poesia e narração simultâneas. No meu caso, faço outra coisa que estou investigando, não sei o que é, mas acho que não são versos.

Como é estar no mercado, sendo uma mulher, e trazendo essa literatura feminista? Você considera sua literatura feminista?

Acho que a minha literatura coloca o corpo de mulher do mundo, no mundo e no centro das histórias. Isso é um gesto importante, um gesto feminista e político, e que eu sinto das minhas companheiras de trabalho também esse movimento.

Esse desejo de colocar as histórias das mulheres no centro da narrativa porque, por muito tempo, não foi. Agora a gente tem um leque de escritoras e está numa fase muito bonita da escrita, da literatura contemporânea brasileira, com escritoras maravilhosas e ativas. Acho que não tem nada mais natural do que de fato essas trajetórias, essas diversas sutilezas e caminhos que as mulheres podem ter. 

Mas, claro, as histórias serão contadas de diversos pontos de vista e todo mundo tem que escrever e deve escrever da maneira que deseja. Do ponto de vista que desejar. Acho que essa liberdade é um direito também quando a gente está falando de literatura e arte. Então, que a gente possa ocupar também diversos lugares de fala a partir dessa contação de histórias.

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