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Telonas Ilhadas: A História dos Cinemas de Florianópolis no Século XX

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Pintura: Átila Ramos

Reportagem: Pedro Bermond Valls (pedrobermondv@gmail.com) e Giovanni Vellozo (giovannivellozo1999@gmail.com)

 Quem pesquisar no Google os termos “cinemas em Florianópolis”, por curiosidade ou pelo simples desejo de ver um filme ao modo tradicional, vai se deparar com sugestões bem específicas. Basicamente, é um cenário dominado por salas localizadas nos principais shoppings centers, com  poucas sessões de cinemas alternativos, na verdade não passando de três locais de exibição.Para aqueles que tem 20 anos ou menos, essa é, na verdade, a única realidade que conheceram na capital catarinense.

 

 Para apresentar uma outra situação a esses jovens e fazer os mais maduros se lembrarem de um antigo cenário muito badalado da cidade, o Cotidiano apresenta a seguir um mundo cinematográfico esquecido: o dos antigos cinemas manezinhos, através do trabalho inédito e revelador de Átila Alcides Ramos – engenheiro, pintor e, definitivamente, cinéfilo -, que não só escreveu a obra “Cinemas (de  Rua) de Florianópolis) mas concedeu uma entrevista especial sobre o assunto.

 

 O cinema em Florianópolis não surgiu isolado. Ele apareceu em conjunto com modificações da infraestrutura da cidade, na chamada Belle Époque (1871-1914), uma época de reformas de higienização urbana e da crença do saber científico como guia do progresso da humanidade. Assim, Florianópolis passou, no início do século 20, por modificações no seu traçado urbano, como a criação de uma avenida sobre a canalização do Rio da Bulha – a hoje chamada Avenida Hercílio Luz. No governo de Gustavo Richard (1906-1910), vieram as primeiras obras de saneamento, a tubulação chegou em 1909, e a primeira lâmpada foi acesa em 1910, além de propostas de ligação via estradas entre a Ilha e o Continente – o que só aconteceria na década de 20.

 

 Comparando-se essa realidade com as primeiras exibições cinematográficas no mundo, feitas na última década do século 19, até que a coisa começou cedo por aqui. Dia 21 de julho de 1900 foi o dia da primeira exibição cinematográfica em Florianópolis, feita de forma improvisada no Teatro Álvaro de Carvalho. A partir dela, uma série de projeções pontuais começaria no centro da capital, no próprio TAC e em casas de famílias abastadas, com uma difusão do cinematógrafo nesses círculos sociais.

 

 No início, normalmente não havia longas-metragens: as sessões desse período eram de filmetes mudos de aproximadamente vinte minutos, normalmente em casas de famílias abastadas, que podiam arcar com equipamento. Quando havia salas específicas para tanto, eram basicamente teatros, com o telão disposto ao fundo do palco. E o palco, por sua vez, dava espaço para as orquestras ou big-bands. O cinema-mudo era todo animado pelo som delas, com trilhas sonoras que complementavam a história contada na tela, inclusive com efeitos sonoros variados.

 

 “Mais ou menos em julho começaram a aparecer em Florianópolis uns ambulantes, que vinham com os cinematógrafos, dos irmãos Lumière, que inventaram o negócio lá na França, e foi-se difundindo pelo mundo todo”, aponta Ramos, com grande entusiasmo por essa pesquisa

 

 Em 1909, a cidade teria seus dois marcos de exibição cinematográfica. O primeiro foi o Parque Catharinense, inaugurado em 18 de fevereiro na região onde hoje fica o encontro da Esteves Junior com a Vidal Ramos. Propriedade do empresário Julio Moura, o espaço no Centro ficou famoso por ter atrações culturais variadas, dentre elas o próprio cinema, com exibições esporádicas num pequeno coreto que se chamou Theatrinho Conselheiro Mafra.

 “Geralmente, ali passavam filmezinhos de 20 minutos. Cenas gerais, de Paris, das cidades. Não havia uma sequência definida dentro das obras.”

 

O segundo marco foi o primeiro cinema de rua da capital. Era o Cassino, criado pelo comerciante Paschoal Simone, dono da empresa Sylla. O cinema abriu as portas em 9 de julho, todos acompanhados da banda-orquestra 6 Bemóis. Na década seguinte, houve a expansão: com o advento da energia elétrica, surgiram cada vez mais salas na Ilha de Desterro, a maioria idealizado por empresários, com algumas exceções de algumas financiadas pela Igreja Católica. São exemplos o “Ponto-Chic”, o “Cinema Variedades” e o “Centro Arquidiocesano Dom Joaquim” – que surgiu como o Círculo de Cinema Católico em um lugar que até hoje funciona como salão paroquial, conectado à Catedral Metropolitana, casa que futuramente a daria lugar a cinemas famosos, como o Odeon e o Roxy (veja infográfico abaixo).

 

 “É importantíssimo esse prédio para cidade, pois primeiro foi Centro Cultural, depois foi cinema. A época do Roxy mesmo eu peguei, toda tardinha de domingo estava lá eu, feliz da vida.”

 

 Apesar desse período importante para a consolidação de cinemas na capital, poucos são os registros catalogados sobre o cinema mudo.

 

Solta o som

 

 O fim da década de 1920 marca um momento de ruptura. Em Florianópolis, foi construída em 1926 a histórica Ponte Hercílio Luz, que resolvia na época as complicações no acesso à Ilha, e que se fez acompanhar de outras reformas na infraestrutura da cidade. No mundo da sétima arte, o som começou a vir junto das telonas, a partir de 1927, com o filme estadunidense O Cantor de Jazz (The Jazz Singer), estrelado por Al Johnson.

 

 Essa novidade, contudo, ainda demoraria quatro anos para chegar a Florianópolis. Apenas em maio de 1931, foi inaugurado o Cine Palace, do empresário Paulo Schlemper, que estreou a nova modalidade sonora com o musical Alvorada do Amor (The Love Parade, 1929, de Ernst Lubitsch). E mesmo assim, não foi uma ruptura imediata: os cinemas mudos que já existiam, como o Variedades, o Internacional, o Ideal e o Ponto Chic, continuavam a sua atuação, pouco a pouco se atualizando em relação aos demais.

 

 Com a atualização, veio a maior popularização. Nesse período, a demanda pela sétima arte era grande em Florianópolis, sendo a década de 30 um período de expansão das salas. Nesse período, foram criados os Cinemas Glória (depois Imperial), em 1932, e o Cine Royal, no TAC. Um marco desse período é o Cinema Rex, inaugurado em 1935 com uma propaganda surpreendente: a de um cinema de luxo, grandioso, que incorporava mobiliário moderno e um bar estilo parisiense.

 

 No entanto, todo este cenário de glória foi varrido com a instalação do Estado Novo de Getúlio Vargas (1937-1945) e seu controle, via Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP). Sobraram dessa época apenas três casas: o Rex, Royal e Odeon. A Segunda Guerra Mundial agravou ainda mais a situação, já que o transporte dos filmes por navio  – à época, Florianópolis ainda era uma cidade portuária -, feito majoritariamente pela companhia Hoepcke se encontrava estagnado.

 

Novos cinemas

 

 Com o fim da guerra se aproximando, os cinemas de rua em Florianópolis começam o seu período de maior expansão. Em 1943, o luxuoso Cine Rex fecha e dá espaço, literalmente, para o Ritz, que viria a se tornar um dos mais prestigiados nomes da história dos cinemas de rua florianopolitanos. A inauguração do cinema, de propriedade do empresário Jorge Daux, ocorre em 15 de abril, com o filme estadunidense Lydia, de 1941.

 A partir do Ritz, outras salas começaram a ser consolidadas na região central. O Roxy, inaugurado em 1944 no mesmo espaço anexo à Catedral onde funcionaram o Cine Centro Popular e o Odeon, acabaria por se tornar um sucesso de público, com sessões a partir de 14h da tarde, incluindo longas-metragens e séries de filmes em sequência com uma história única, exibidos regularmente.

 

 A família Daux, do setor hoteleiro, investiu nesse período na criação de mais salas. Além do Ritz, o grupo empresarial também abriu mais duas salas em pouco mais de duas décadas. A primeira foi em julho de 1954: o Cine São José, em frente ao Cine Roxy, um cinema com poltronas móveis, iluminação de ponta e altos relevos feitos por Franklin Cascaes. Em 1975, seria a vez do Cecomtur, e assim atravessaram seu período de maior público, na sequência de anos muito prósperos para a cultura em Florianópolis. A primeira emissora de rádio, a Rádio Guarujá, começou a operar nesta época e surgiu também o Museu de Arte Moderna de Florianópolis. A partir daí, por volta da metade do século 50, a cena do cinema de rua ficou razoavelmente estável, os nomes já mencionados faziam a manutenção do mercado local, que por fim perdeu força na década de 90, com o surgimento dos cinemas de shopping, a expansão do VHS e, por fim, a vinda do DVD, em 1997.

 

 A motivação para a pesquisa de Átila Ramos surgiu a partir de uma exposição com algumas pinturas suas dos cinemas de rua da segunda metade do século 20, já de filmes sonoros.  “Aí eu fui na Biblioteca Pública do Estado buscar informação para completar os dados dos cinemas”, conta o pintor, “e dei de cara com outros cinemas, e pensei, ‘nunca ouvi falar nisso’. E percebi então que havia uma história que estava coberta, ainda está”.

 

 Segundo Ramos, a maior parte dos registros que existem dessas primeiras exibições estão basicamente nos jornais da época, como O Estado e A República, que traziam anúncios e notícias sobre as sessões e inaugurações. Um caminho ainda assim cheio de dificuldades, porque “às vezes a coisa não fecha com a outra, é um trabalho de garimpo. Os jornais já estão muito velhos, e nunca está na ordem que a gente quer”, conta.

 

 “O que me motivou a fazer esse trabalho aconteceu assim: eu sou pintor, já tinha pintado o São José, o Ritz – fizemos exposições e tal. Eu fui na Biblioteca Pública para encontrar os dados para completar o quadro, e dei de cara com o ‘Cinema Internacional”, então eu vi que tinha uma história coberta, né, que precisa ser descoberta, e eu ainda acho que tenho que  fazer mais um livro para revelar aí toda a história. “Dei um tiro numa coisa, para esclarecer uma dúvida, e dei de cara com outra. Estava predestinado, nos espíritos e tal. Fui indo e consegui montar a cronologia. Esse livro abriu caminhos.”

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