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“As pessoas não me chamam de Haroldo sem querer, é por deboche”

Texto e foto: Natália Duane (nataliaduanedesouza@gmail.com)

Silvy (5)

Silvy secava os cabelos de sua cliente, parando vez ou outra para jogar o rabo de cavalo liso do mega-hair, que insistia em cair por cima dos ombros, para as costas. Tem a voz suave, resultado dos hormônios que toma diariamente e lhe dão os contornos do corpo, que  mostra através de um decote comportado. Franze as sobrancelhas ao pensar em deixar as pílulas e ouvir a voz engrossar novamente. Encosta a mão na bochecha, horrorizada com a possibilidade dos pelos da barba – reduzidos após 28 dolorosas sessões a laser – voltarem.

Mas até 2007, o temor de Silvy era outro. Frequentadora da igreja evangélica, ouvia outros fiéis lhe falarem que aquilo era coisa do demônio – iria para o inferno. “Eu tinha medo, imagina”, diz, evidenciando a religiosidade. Ia aos cultos se vestindo discretamente e utilizando o nome Haroldo. Saiu do círculo religiosos quando uma pastora queria lhe batizar e  “livrar de todos os pecados”. “Quando eu percebi que teria que me livrar das minhas roupas, virar homem mesmo, eu saí dali, porque passaria a ser quem eu não sou”.

A cabeleireira, se por um lado  se sente em paz por ter seu corpo em conformidade com sua mente, não deixou de sofrer preconceito. Formada em1997 no curso profissionalizante, abriu o próprio salão de beleza. Antes, não tinha emprego fixo, só contratos temporários como telefonista. Mesmo no curso, só foi aceita seis meses depois de contatar a escola de cabeleireiros. A professora – que havia mencionado que a sala estava cheia –  confessou depois que havia mentido. “Ela tinha medo que eu fosse uma transexual escandalosa, encrenqueira”.

No curso, aprendeu a domar as madeixas com a mão direita, mesmo sendo canhota. Ela explica que a professora só conseguia ensinar dessa maneira, e assim aprendeu. Finalizado o curso, ficou mais três anos no curso como assistente . As agressões continuavam por parte dos clientes, que vinham cortar o cabelo por R$2. Ela recorda de um marinheiro que, ao olhar para ela, pediu se não poderia ir cortar o cabelo com outra pessoa.  “Eu disse ‘claro, tudo bem’, nunca fui de fazer escândalo”. Silvy é compreensival com os amigos que ainda a chamam de Haroldo, pois “não fazem por mal, e sim por costume”.

Silvy é na realidade o nome social, que reflete a identidade da cabeleireira, que ainda é – segundo consta na certidão de nascimento e carteira de identidade – Haroldo. Apesar de ser garantido o uso de outro nome, diferente daquele presente no registro civil, no atendimento em hospitais públicos, Silvy – cabelos longos, maquiagem e brincos – foi realizar no Hospital Florianópolis uma pequena intervenção cirúrgica no ouvido, e após aguardar por um tempo na sala de espera, ouviu o atendente chamá-la: “Haroldo?”.

“Não é que eu me importe, mas eu havia pedido para me chamar de Silvy”, diz a cabeleireira que eventualmente é chamada por amigos pelo nome de nascimento. “As pessoas me chamaram assim a vida inteira, mas alguém fazer isso após eu pedir? É para humilhar mesmo”. Ela não pensa em trocar de nome, por enquanto, pois não quer se envolver em um longo processo na justiça. Caso o Projeto de Lei João Nery, que ainda tramita na Câmara Federal, seja aprovado, não será necessário aprovação judicial.

APARÊNCIA

Silvy, enquanto lava o cabelo de uma das clientes, tem o desejo de fazer a cirurgia para a alteração de sexo. Porém, não considera o procedimento pelo Sistema Único de Saúde. “Fazer no serviço de saúde público? Eu não, vai que fica torto, mal feito?”. Manifesta também desgosto pelo exame psicológico que precede a cirurgia, pois diz saber o que quer e que não precisa de alguém que comprove. “Eu me sinto assim desde os 6 anos, não é um exame que vai atestar meu estado agora”.

Em 17 de maio de 1990, a assembléia geral da Organização Mundial da Saúde aprovou a retirada do código 302.0 (Homossexualidade) da Classificação Internacional de Doenças, declarando que “a homossexualidade não constitui doença, nem distúrbio e nem perversão”. Maio é o mês do combate à homofobia, lesbofobia, transfobia e bifobia, e para conhecer a realidade da população LGBT de Florianópolis e Santa Catarina, a equipe do Cotidiano UFSC preparou três reportagens sobre o tema. Na primeira matéria, contamos os entraves para a criação do Conselho Municipal de Direiros LGBT, e na segunda entrevistamos aluno da UFSC que foi discriminado em festa por ser gay

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