Reportagens

Amor em garrafa(do)

Por Giovanna Figueiró Pacheco (giovannafigueirop@gmail.com)
* Reportagem realizada na disciplina Apuração, Redação e Edição V, ministrada pela Profa. Melina de la
Barrera Ayres, em 2019.1

 

A mesa está farta. Familiares e velhos amigos estão reunidos na sala. As comidas tipicamente italianas, como pães, bolinhos de batata, queijos e salames, se misturam com frutas, diferentes doces e, claro, vinhos de várias safras. Essa festa toda tem motivo: é dia de, finalmente, engarrafar o vinho.

Após dois meses de fermentação e oito de decantação, nós, e o vinho, estamos prontos. Todo ano, desde 2015, é assim. Enquanto para alguns o dia de engarrafar é dia só de festa, para Gilmar Pacheco – o meu pai – e para Lioi – amigo e parceiro de produção de longa data – é dia de trabalho. Mão na uva desde ce-di-nho. Com eles, o clima de comemoração vem desde o início da semana, na expectativa de que o sábado chegue o mais rápido possível.  

O vinho de Gilmar e Lioi é feito a partir da uva plantada no fundo dos quintais dos dois amigos, localizados na Vila Califórnia, na cidade de São Paulo. Lioi é morador da Vila desde novinho, quando saiu da Itália. Gilmar e sua esposa Soeli – minha mãe – não moram lá, mas têm sua empresa ao lado da casa do italiano quase brasileiro. Com aproximadamente 10 m² de plantação e 14 pés de uvas, juntando ambas as plantações, é possível produzir cerca de 35 garrafas da bebida alcoólica. O recorde de produção foi em 2017, quando produziram 60 garrafas de vinho com essa mesma quantidade de pés. Imagine só a felicidade! Assim, sem nenhum milagre e com muita fermentação, a uva vira vinho. 

Em Florianópolis, no bairro João Paulo, há uma produção semelhante: Adolfo, de 75 anos, tem sua plantação no quintal.  Quando o conheci ele queria se certificar de que eu não era de alguma grande mídia, pois estava “cansado de ficar dando entrevista pra esses lugares”. Logo nos primeiros minutos se soltou. Enquanto respondia cada pergunta, mexia em seu celular para mostrar fotos. Mostrou-me o pôr do sol em seu quintal, as rosas – tão delicadas e bem cuidadas –, o parreiral, a proteção para as uvas, os rótulos de seus vinhos, flores e mais flores, o pezinho de café que plantou como teste e, claro,  seu netinho, o ajudante. Repetia “fica tranquila, minha filha, um dia eu te mostro tudo isso [pessoalmente]”.

Com entusiasmo, Adolfo me mostrou essa — entre outras tantas fotos — para exemplificar a vista deslumbrante de seu parreiral. Foto: acervo pessoal.

Desde o primeiro contato, por telefone, ele queria saber sobre a produção de meu pai. Na entrevista foi igual. Depois de alguns minutos já me perguntava sobre os vinhos produzidos pela minha família. Foi, então, a minha vez de mostrar algumas fotos. “Meu Deus! Olha que felicidade!” – exclamou quando viu uma foto do meu pai posando com as uvas colhidas. “Eu tenho uma foto igual! Sei como é essa felicidade!”, e logo pegou seu smartphone para me mostrar. 

  Gilmar em sua colheita. Foto: arquivo pessoal.  Colheita de Adolfo, que preferiu dar enfoque para as uvas. Foto: arquivo pessoal.

 

Entre tantas características e paixões semelhantes, o fator mais destoante é a estrutura que cada um deles utiliza para o cultivo. Talvez não seja tão fácil imaginar a diferença entre essas duas capitais, então vou te ajudar um pouquinho.

Comece pensando sobre a vizinhança da Vila Califórnia, em São Paulo. A rua Visconde de Caeté é larga e as crianças costumam usá-la para brincar nos finais de tarde. As casas e mais casas bem simples, se distribuem grudadas por quilômetros a fio. O rio Tamanduateí, que está poluído, é moldado pela Avenida do Estado, uma das maiores e mais movimentadas da região do ABC. Em meio ao mar de casas e a quatro quarteirões do rio, está a propriedade do Lioi e a empresa dos meus pais. Quem passa na frente nem imagina o cultivo de uvas que se realiza no pátio dos fundos. 

 Agora, imagine a Rodovia João Paulo, no bairro de mesmo nome, na ilha de Santa Catarina. De classe média alta e bem próximo ao centro da cidade, o território é cercado por natureza. De um lado, mar. Do outro, mata atlântica. Ao sul e ao norte se encontram outros bairros com a mesma estrutura, marcados pela forte presença do verde. No bairro, a condição das casas e dos altos prédios se mistura: umas bem luxuosas e outras nem tanto, mas a maioria com área verde. A casa de Adolfo tem um amplo quintal com tons de verde que se misturam e se sobrepõem, dando um charme ainda maior para o terreno. Seus 80 pés de uva são a atração principal e o gramado, as árvores e outras plantas, os completam.                                          

Ao reparar nos vinhos produzidos por Gilmar e Adolfo, achei curioso que ambos optam por fabricar e utilizar rótulos, por mais que não comercializem. Jean Matheu Piccini Lago, mestre em sociologia política e estudante do curso técnico em Restaurante e Bar no Instituto Federal de Santa Catarina (IFSC), me explicou uma hipótese para esta escolha. Existem dois tipos de consumidores de vinho, os Off Trade e os On Trade. Os primeiros têm interesse no prazer corriqueiro, no consumo do produto a partir do mercado, com análise de preços ou promoções. Já o consumidor On Trade busca o consumo da cultura do vinho e seu interesse está nos bens simbólicos associados a ele.

Segundo Jean, o ato de engarrafar a bebida, utilizar rolhas e rótulos faz com que os dois produtores se encaixem na segunda categoria, uma vez que teriam a opção de consumir diretamente dos garrafões, ou simplesmente comprá-los. Para eles o interesse envolve tudo ligado ao âmbito simbólico que o vinho oferece, como a estética, o ato de engarrafar e consumir a bebida com os amigos.

O consumo e produção de vinhos não é uma tradição tão forte no Brasil como em outros países, mas, tem crescido consideravelmente. A onda do Do It Yourself, com tradução livre para “faça você mesmo”, também fez com que esta produção e seu consumo aumentassem. As pessoas têm tomado mais iniciativa para produzir coisas de seu interesse e, segundo Jean, os vídeos no YouTube e a própria internet, colaboram na divulgação dos modos de fazer e fomentaram o interesse por fazer os próprios produtos.

 

Muito além da uva

Os dois parceiros de vinho, Gilmar e Lioi, sempre produziram para consumo próprio e, para minha sorte, para os familiares e amigos. A falta de interesse pela venda é facilmente justificada: “ah, filha, eu não vendo porque não quero ficar sem!” – disse  meu pai, rindo, em uma de nossas conversas. O vinho se tornou um de seus hobbies mais importantes: veio aos poucos para a sua rotina e acabou como um compromisso prazeroso. Demanda tempo, paciência, cuidado e, ao final, muita, mas muita satisfação. Em 2019, com a evolução e aumento da produção, está cogitando vender para amigos que tenham interesse. 

Adolfo nem pensa em vender. Produz cerca de 40 garrafas, em aproximadamente seis meses, e as guarda ao longo do ano para degustação com sua nora Juliane – já que seus dois filhos não bebem.  Justifica sua escolha afirmando “eu não vendo, porque não tenho vinho pra vender. Eu só tenho pra partilhar.” 

No nosso segundo encontro foi o que fizemos: partilhamos nossos vinhos. Nos encontramos em uma manhã chuvosa para que eu conhecesse sua produção, e então levei uma garrafa do meu pai de presente. Sua animação ao ganhar a bebida tão comentada foi expressada em sorrisos largos e repetidos “muito obrigado, Giovanna!”. No local de produção, que fica no subsolo da casa, Adolfo explicou, com uma empolgação semelhante a do meu pai, o passo a passo de como faz seus vinhos.                                           

Na adega, me mostrou as garrafas que ganhou de presente e as da produção própria. Após longas conversas, me olhou “vou fazer uma coisa que acho que nunca fiz antes”, pegou um de seus vinhos e me entregou “esses aqui nunca saem de casa! Espero que goste.” Eu, com a minha mania de carinhos, perguntei se poderia lhe dar um abraço. Afirmou com a cabeça, já em minha direção: “pode sim, mas só se for daqueles apertados. Esses fraquinhos eu não gosto”.

 

    Da esquerda para a direita, os vinhos de Adolfo e da minha família. Foto: Giovanna Pacheco

 

A casa do senhor de olhos claros e riso leve me passou a sensação de conforto e, detalhe: a visita não durou mais do que uma hora. A conversa e o contato próximo me lembraram da relação gostosa que tenho com o meu pai e de como essa bebida faz parte de nossa história.

Para o meu pai, o sentimento é parecido e remete a quando pisoteava as uvas para ajudar seus tios. “Fazendo vinho volto a minha infância. Me sinto nostálgico de quando eu era criança e tomava vinho doce escondido. Eu e os piás da tia Olinda… A gente ia no porão e tinha os barris de dois mil litros. […] Quando faço vinho todo aquele tempo volta.” 

Logo que decidi a pauta desta reportagem, liguei para os meus pais, que moram em São Paulo, para contar da escolha: “sabiam que esse ano eu vou fazer sobre a produção de vinhos, por causa do papai?”. A ligação que antes estava barulhenta, enquanto os dois falavam ao mesmo tempo, ficou quieta. Não se ouvia um pio. Rapidamente o silêncio foi interrompido pela minha mãe, ao fundo, “há, há! Ele tá chorando!”. Ele, em resposta, “que saco, hein? Por quê você tem que contar tudo?”.

Logo depois rimos, mas, por algum motivo, a emoção permaneceu no ar. Parecia que a saudade tinha apertado ainda mais. Desligamos. Cheguei em meu apartamento, em Florianópolis, e tomei uma taça de vinho. Me fez sentir o gostinho de casa, de quando nos reunimos no quentinho da cozinha. De quando ele e minha mãe chamam meus melhores amigos para participar. Ou de quando colocam umas garrafas escondidas na minha mala antes de eu voltar para a minha cidade atual. Para mim, o vinho dele envolve muito carinho e realmente é o mais gostoso. 

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